Finalmente um artigo que descreve definitivamente a sinergia entre terpenos e canabinoides (ou não)

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
9 min readApr 23, 2021

Esse mês um artigo chamou bastante atenção da comunidade canabinoide por ter supostamente cravado uma conclusão definitiva e com evidência direta da interação entre terpenos e canabinoides. Grifo evidência direta porque esse é exatamente o ponto faltante, a "pedra filosofal" que encerraria essa questão de uma vez por todas. O paper também chamou a atenção por ter sido publicado na Scientific Reports, um periódico do respeitadíssimo grupo Nature.

Essa é a referência que reacendeu a discussão em torno do tema. Você pode ler o artigo na íntegra em https://www.nature.com/articles/s41598-021-87740-8. Pra quem não sabe o que é o efeito Entourage, recomendo artigo que publiquei tempos atrás aqui mesmo no Medium.

Quem me acompanha sabe que sou um entusiasta da ideia de sinergia entre compostos de planta, um conceito tão difundido no meio da fitoterapia, e particularmente debatido no âmbito da Cannabis medicinal. O conceito é tão atrativo quanto difícil de demonstrar, e para os mais rigorosos em farmacologia, o termo "sinergia" chega a dar arrepios, porque pra prová-lo de verdade, praticamente você precisa demonstrar que consegue fazer a soma de 1+1 resultar em 3 (ou mais). Já escrevi sobre esse tema em um artigo de divulgação, e acabei me deparando com esse artigo porque ele cita um outro artigo meu, da descrição do mecanismo de modulação alostérica em receptores canabinoides tipo CB1.

Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

Os 2 artigos abaixo mencionam um pouco da relação entre canabinoides e terpenos no âmbito da Cannabis medicinal.

Para nivelamento de conhecimento, este diagrama abaixo traz os principais terpenos encontrados em plantas do gênero Cannabis.

Mas o que o artigo traz de novo para julgarmos que ele demonstrou de fato o efeito Entourage na Cannabis, encerrando a polêmica discussão?

Bom, este artigo tem uma abordagem que utiliza experimentos in vitro e in vivo, e utiliza terpenos frequentemente encontrados nas planta do gênero Cannabis. Contudo, o artigo não é livre de críticas. Primeiro, eles usaram um canabinoide sintético conhecido como WIN 55,212–2, que é similar, mas não é o THC. Além disso, as doses usadas são bastante exageradas e provavelmente não refletem as doses normalmente atingidas por pacientes ou mesmo usuários recreativos; portanto, embora descreva um fenômeno real, há quem argumente que não se trata de um fenômeno clinicamente relevante. Vamos ver mais detalhes dos experimentos na sequência.

As doses usadas são bastante exageradas e provavelmente não refletem as doses normalmente atingidas por pacientes ou mesmo usuários recreativos; portanto, embora descreva um fenômeno real, há quem argumente que não se trata de um fenômeno clinicamente relevante.

A primeira descoberta interessante é que alguns terpenos são, por si só, canabimiméticos. O que isso quer dizer? Que eles ativam diretamente mecanismos do sistema endocanabinoide. Como podemos ver nos gráficos abaixo, descrevendo efeitos analgésicos de terpenos relevantes para os quimiotipos de Cannabis, há um efeito de redução da resposta de dor, e esse efeito é associado à ativação dos receptores CB1.

Pelo menos quando falamos do α-Humuleno, β-Pineno, Linalol e Geraniol fica evidente que:

  1. Estes terpenos geram um efeito analgésico relevante;
  2. O efeito é somatório aos efeitos do agonista canabinoide estudado;
  3. Há uma participação dos receptores canabinoides tipo CB1

O β-Cariofileno já se sabia que é um agonista canabinoide tipo CB2 com efeito anti-inflamatório, então não é novidade que ele também responda. Eu senti falta do mirceno, que é um importante terpeno presente na Cannabis e que já foi associado a efeitos analgésicos possivelmente mediados perifericamente.

Este experimento de "tail flick" (retirada da cauda, numa tradução livre) avalia um efeito analgésico de substâncias sobre uma reação medular, que leigos interpretariam como "instintiva": a retirada de um membro que está posicionado sobre uma fonte de calor. É exatamente a mesma resposta que fazemos ao tirar a mão que encosta numa chaleira quente, por exemplo. Neste caso, o experimento foi feito em camundongos, com injeções i.p. de doses bastante generosas dos terpenos (200 mg/kg), do agonista canabinoides WIN 55,212–2 (5.6 mg/kg) acompanhados ou não do antagonista CB1 rimonabant (10 mg/kg). Na minha experiência e de outros colegas farmacologistas, todas doses desnecessariamente altas, diria até exageradas. E também causa estranheza realizar um estudo como esse com apenas uma dose dos terpenos. Se fossem um "dose-range study" seria muito mais fácil estabelecer uma potencial sinergia. Este claim ainda permanece aberto nas condições atuais em que o experimento foi realizado.

O gráfico de radar abaixo mostra de uma maneira ainda mais interessante e "visual" a comparação entre os diferentes terpenos no teste da tétrade, típico para avaliar atividade canabimimética. Desta escala, conclui-se que o α-Humuleno é tipicamente mais sedativo, juntamente com o β-Pineno (embora em menor grau), enquanto Geraniol e α-Humuleno possuem um perfil particular de promoção de catalepsia. Todos os terpenos exerceram efeitos semelhantes a canabinoides em menor ou maior grau (em relação ao WIN), mas seu perfil farmacológico individual claramente diferem.

Honestamente, eu já torcia o nariz quando via alguém se referindo aos "terpenos" assim em geral e atribuindo a eles um determinado efeito de interesse médico, porque esta coesão de classe química das moléculas não se reflete necessariamente em um perfil farmacológico idêntico. Aqui vemos claramente que este é o caso: os terpenos são obviamente diferentes entre si. Então, declarar qualquer coisa a respeito de “terpenos” generalizando, ou é falta de informação ou um prenúncio sugerindo que o discurso que vem a seguir é mais ativista/ideológico do que científico. E muitas vezes este tipo de discussão fica bastante inflamada… ai de quem "falar mal" ou questionar os terpenos. Sai de baixo. De contra-cultura e conhecimento "dos entendidos" virou uma unanimidade, quase uma crença. Acho que se fundassem a "seita dos terpenos" teriam adeptos suficientes para termos missas diárias.

Importante mencionar também que alguns dos efeitos foram bloqueados pelo antagonista dos receptores canabinoides tipo CB1 (rimonabant), mas nem todos. Sugerindo, então, que os efeitos canabimiméticos dos terpenos podem de alguma maneira não serem ligados à ativação destes receptores especificamente. É curioso, mas conceitualmente possível, ser semelhante aos canabinoides mesmo sem ativar os receptores canabinoides.

De contra-cultura e conhecimento “dos entendidos” esse fenômeno virou uma unanimidade, quase uma crença. Acho que se fundassem a “seita dos terpenos” teriam adeptos suficientes para termos missas diárias.

Os estudos in vitro indicaram um potencial bem interessante dos terpenos como canabimiméticos. Foram avaliadas a ligação direta das substâncias aos receptores (binding com radioativos) e algumas vias importantes de transdução do sinal já estudadas previamente (AMPc, ERK). Todos os terpenos atuaram em maior ou menor grau como canabiméticos, pelo menos quando avaliados na fosforilação da proteína ERK.

Contudo, veja que interessante:

  1. Linalool, Geraniol e o controle positivo WIN55,212–2 podem ser considerados canabimiméticos dependentes dos receptores CB1
  2. α-Humuleno, β-Pineno e β-Cariofileno atuam de uma maneira independentes dos receptores canabinoides, ou seja, por outros mecanismos, talvez ainda nem descritos.

E importante mencionar para agradar aos críticos que a ativação da via de ERK acontece in vitro e em concentrações absolutamente altas. Nenhum expeirmento na casa de 1mM costuma ser fisiologicamente relevante, com substância nenhuma. É simplesmente muito concentrado, não se atinge esta concentração em administrações "naturais" destas substâncias.

O paper continua, é uma verdadeira aula de farmacologia canabinoide. Veja abaixo os gráficos de bindings e transdução do sinal. Bastante coeso, desta substâncias todas, diria que o geraniol se destaca um pouco por aparentemente ter um mecanismo diferenciado, como antagonista. Fora isso, são semelhantes, e todos parecem se ligar de alguma forma em receptores CB1, com sítios de baixa afinidade. Algumas vezes, estes sítios podem ser inespecíficos, como simplesmente "perturbar a membrana celular".

Fora essa hipótese de "desequilíbrio lipídico" nas membranas celulares, que poderiam desestruturar as lipid rafts, e alterar a afinidade de receptores CB1, parece-me relevante mencionar que o efeito do geraniol poderia ser explicado por uma função conhecida como "agonista enviesado". Contudo, é um pouco cedo para defender esta visão.

Photo by Science in HD on Unsplash

Uma pergunta que paira no ar é: com tanto falatório e polêmica, será que estes foi realmente o primeiro paper a olhar para esta questão de interação entre terpenos e canabinoides? E, adivinhem, claro que não foi.

Agora, porque o outro paper nao encontrou evidência do “Efeito Entourage”? Vamos procurar entender…

A primeira explicação, e a mais simples, é a concentração utilizada. Talvez na concentração de 10 uM, que foi a máxima utilizada, os terpenos não apresentem os mecanismos canabinoides que demonstramos aqui. É uma hipótese. Fora isso, a única coisa que salva os autores deste estudo é que os terpenos podem eventualmente não se ligarem a receptores canabinoides quando estes estão acoplados a canais de potássio. Acho meio brabo, mas conceitualmente, poderia ser.

Baseado nesse paper já conhecido, o entendimento anterior é que, se houvesse alguma interação entre terpenos e canabinoides, ela se daria em outro alvo farmacológico, e não nos receptores canabinoides CB1.

Vamos dar o benefício da dúvida, mas a verdade é que vemos mais um caso dogmático na ciência de que a "Ausência da evidência, não é evidência da ausência". Ou seja, não é porque um artigo em específico não encontrou, que o fenômeno não seja real.

É legal ser cético, é legal e de boa prática repetir as coisas no laboratório, mas a gente sabe que chega num determinado nível que é um tudo uma questão de percepção e interpretação. A hipótese comum nestes casos é a “perturbação” da membrana celular, considerando que os terpenos são conhecidos por aumentar a solubilidade de lipídios… diria que pode ser um mecanismo possível. Mas "vira e mexe" se busca a explicação de fenômenos novos e desconhecidos desta forma. O álcool já foi explicado assim, os corticóides já foram explicados assim e até os próprios canabinoides. Depois, em um certo ponto, alguém descreve melhor o mecanismo e tudo se esclarece.

Photo by Science in HD on Unsplash

É uma pena, mas talvez o "erro" dos pesquisadores antigos (que não observaram o efeito Entourage nos seus experimentos) tenha sido puramente uma questão de entendimento do campo + visão.

Estes experimentos usaram uma via pouco ortodoxa para os canabinoides, envolvendo ativação de Gi/o e hiperpolarização por mediação de canais de potássio (GIRK). Em pouco se parece com uma condição fisiológica… o grande charme do novo artigo é que embora use concentrações altas, ele traz um cenário muito mais plausível, com condições in vitro e in vivo mais amplas e "agnósticas" do que o paper anterior que chegou a conclusões baseado em um único sistema farmacológico. Por isso, diria que estamos caminhando para uma compreensão melhor do fenômeno, e que pode ser mesmo no nível do receptor canabinoides. A questão ainda permanece aberta, minha conclusão é que o fenômeno em si foi descrito, mas a relevância pros efeitos da Cannabis em si, como consumida por pacientes ou usuários, ainda precisa ser estabelecido.

Para terminar, recomendo este artigo do Prof Lumir Hanus, de Israel, que também abordou os diferentes tipos de terpenos e quemiotipos, especulando um pouco a respeito de efeitos sinérgicos. Contudo, esta abordagem é mais química do que farmacológica, importante mencionar.

Deixo abaixo algumas Referências úteis pros interessados. Espero que goste!

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

--

--

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.