Maconha mata neurônio: A origem do mito (1/3)

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
12 min readOct 24, 2017

Começando o Medium com o conteúdo na íntegra do capítulo de livro “Maconha mata neurônio?” que publiquei no livro Caçadores de Neuromitos: Desvendando os mistérios do cérebro, recentemente lançado.

A boa nova, é que mesmo você que acompanha a ciência da Cannabis e já sabe a resposta pode se surpreender com a origem desse mito. A notícia ruim, ao final dessa série, é que esse mito é tão resistente, que a história se repete, e vou terminar com um artigo deste ano, repetindo os mesmos erros do passado.

Estamos falando de um dos grandes mitos da neurociência, e que possui enormes consequências políticas.

Dizer que a maconha mata neurônios é uma simplificação absurdamente grosseira dos efeitos biológicos desta planta, cujo uso pode sim trazer consequências adversas para seus usuários, mas que, ao que tudo indica, são muito menores do que os potenciais benefícios.

Nesta série vou conduzi-los pelos registros históricos e científicos de como esse mito nasceu… [enjoy it]

Publicado em 3 partes
Parte 1: Essa que você está lendo.
Parte 2: Então a planta não faz mal? (
http://goo.gl/MafrHH)
Parte 3: Old habits die hard (
https://goo.gl/JhFkGK)

~ A origem do mito ~

A ideia de que o uso de maconha mata neurônios é um neuromito que tem mais ou menos uns 80 anos, mas segue sendo repetido como se tivesse sido “descoberto ontem” e fosse uma verdade inquestionável [1]. A história de como ele surgiu pode ser considerada um capítulo à parte na história de como a ciência pode ser distorcida para contar uma história que “interesse” ao patrocinador do estudo. Chega a ser constrangedor para os cientistas terem que argumentar sobre esse tema, considerando a maneira distorcida como tudo isso começou. Qualquer pessoa com senso crítico consegue perceber que tem algo errado em como essa história se iniciou, e acredito que você não seja diferente. Nesse capítulo vamos discutir sobre isso, bem como lhe atualizar sobre as recentes pesquisas envolvendo a maconha.

Importante entender que como estamos falando de uma planta proibida, este status legal (ou melhor, ilegal) tem uma forte influência na maneira como as pessoas pensam sobre o tema. Inclusive, eu diria que o preconceito foi parte importante na construção desse mito. Não sei se você sabia, mas até 1937 a maconha era legal, e seus derivados eram utilizados de várias maneiras, passando pelo uso medicinal registrado na Farmacopeia Inglesa, Americana, Portuguesa e Indiana [2].

Apanhado histórico muito legal publicado na Super Interessante https://super.abril.com.br/ciencia/a-verdade-sobre-a-maconha/

Em 1968, em um contexto histórico pós-guerra do Vietnã nos Estados Unidos, o presidente Richard Nixon foi eleito com uma plataforma de impor a lei e colocar ordem no país, promovendo entre outras coisas uma “guerra contra as drogas”, que envolveu amplamente a mídia. Sem entrar muito no mérito do contexto histórico, havia uma vontade política de perseguição à Cannabis naquele país. Há relatos de que inclusive os protestos anti-guerra da época eram tidos como “pró- drogas” e que os pacifistas eram todos uns “drogados” e deveriam ser perseguidos. Não é contraditório que os caras “do mal” sejam os que defendam a paz? Enfim, essa é só uma pequena introdução ao tema, para você entender que havia uma grande influência política no momento em que a planta foi proibida. Esse conhecimento prévio auxiliará na interpretação dos eventos do próximo parágrafo que se referem à ciência… Um pouco depois dessa época, no final dos anos 70, outro presidente americano continuou operando a guerra às drogas, cuja maconha era um dos principais inimigos.

Nesse período, foi encomendada uma pesquisa pelo governador da Califórnia, Ronald Reagan, que estava se deparando com a popularização e aumento do consumo da maconha no seu estado e precisava saber se ela era realmente perigosa. Ou melhor, “provar que era”, já que o governador era abertamente apoiador da guerra às drogas [4, 5]. Curiosamente, em 1972, um ano após o presidente Nixon arbitrariamente classificar a maconha como “Schedule I”, ou seja, na categoria em que se encontram as drogas mais “pesadas” e sem efeito medicinal reconhecido; uma comissão de estudiosos sobre o tema recomendou que o presidente descriminalizasse a posse e distribuição de maconha para uso pessoal [4]. Essa comissão, que ficou conhecida como “Comissão Schafer” por ter sido presidida pelo governador Raymond P. Shafer e co-presidida pelo médico farmacologista Dana L. Farnsworth havia realizado um estudo transversal, ouvindo especialistas, profissionais de saúde e com ampla participação de diversas camadas da sociedade em pesquisa de opinião[6]. No entanto, como a conclusão havia sido contrária às intenções do então governador Ronald Reagan, ele precisava de uma resposta à altura. E essa resposta foi o estudo supostamente científico conduzido pela equipe do Dr. Robert G. Heath em 1974, na época professor da Universidade de Tulane. Por isso ficou conhecido como “Tulane Study”[7].

Pros interessados, esse texto do Departamento de História da Ohio State University conta de maneira detalhada os eventos históricos que culminaram com a proibição da maconha em meados do século XX 3. Siff S. The Illegalization of Marijuana: A Brief History. ORIGINS Current Events in Historical Perspective. 2014;7(8). http://origins.osu.edu/article/illegalization-marijuana-brief-history

Vou descrever com detalhes como o estudo foi realizado para que você possa tirar suas próprias conclusões. Os cientistas usaram 3 macacos Rhesus como “sujeitos experimentais” para seu estudo (na época era bem mais comum se utilizar macacos como animais de laboratório do que hoje). O plano era expor cada um destes macacos a uma quantidade de fumaça equivalente a 30 cigarros de maconha (ou baseados, como são chamados os cigarros de maconha) por dia, durante 12 meses, e avaliar os efeitos sobre o tecido cerebral [5–8]. Faça as contas: são aproximadamente 210 baseados por semana, totalizando quase mil baseados por mês! Não surpreende que ao final dos experimentos os animais estavam completamente mal de saúde, atrofiados e começaram a morrer depois de “apenas” 90 dias. Pior, ainda há uma controvérsia levantada pela organização NORML (que teve acesso aos protocolos do estudo após 6 anos de solicitações judiciais), que o protocolo de fato executado foi ainda mais exagerado. Para “facilitar” o experimento, os animais foram forçados a inalar uma quantidade ainda maior de fumaça, em menos tempo (estima-se cerca do equivalente a cerca de 60 baseados em uma exposição de 5 minutos, diariamente), evitando que os pesquisadores precisassem ficar trabalhando o dia inteiro nesta pesquisa. O que você acha, essa abordagem lhe parece razoável como experimento tentando simular o padrão de uso dos humanos? Para mim, me parece uma prática bastante exagerada e anti-ética, “forçando a barra” para conseguir observar os efeitos que desejavam.

Após a morte dos animais, os cientistas realizaram o que chamamos de autopsia. Eles examinaram o cérebro dos macacos e compararam com o cérebro de macacos do biotério, que não tinham passado por nenhum procedimento experimental. A conclusão do experimento foi: os macacos que haviam passado pelo experimento apresentavam um número imensamente maior de células mortas no cérebro (os neurônios) comparado aos animais controle (ou seja, aqueles que não passaram por inalação forçada de fumaça da maconha).

Esta conclusão foi um verdadeiro alarde e o governador Reagan declarou publicamente que “dano cerebral permanente é um dos resultados inevitáveis do uso de maconha”. Este estudo gerou um dos principais motes de campanha de Reagan, que havia se tornado candidato à presidência dos Estados Unidos e expandido a “guerra às drogas”. Curiosamente, os dados brutos dessa pesquisa e os próprios métodos permaneceram ocultos por 6 anos, até que uma ONG ativista criada na época conseguiu ter acesso aos dados e os apresentou para que pesquisadores independentes pudessem avaliá-lo [5–8].

Foi literalmente assim que se realizaram os primeiros experimentos que concluíram que "maconha mata neurônios". Não fosse suficiente o exagero da quantidade de fumaça inalada, o grupo controle foram macacos mantidos na gaiola moradia, ou seja, não tinham inalado qualquer tipo de fumaça. Tá certo? Claro que não.

~ Entendendo de verdade os resultados ~

Com o acesso aos dados originais da pesquisa, foi possível interpretar melhor os resultados, inclusive os problemas com o desenho experimental [7], pois, na ciência, nem todos os estudos têm a mesma qualidade. Quando cientistas fazem um experimento é necessário “desenhar” o estudo de uma forma que os resultados sejam, de fato, explicativos da questão que se propôs. Vamos analisar o experimento original que supostamente mostrou que a maconha mata neurônios e ver quais são os reais resultados que podem ser concluídos.

Um estudo considerado de boa qualidade passa pelo crivo de outros pesquisadores, o que chamamos de “peer-review”, e consegue ser replicado por outros laboratórios, em condições similares ao estudo original. Neste caso, a análise de pesquisadores independentes concluiu que ao invés da maconha, o que havia causado o dano cerebral nos macacos era intoxicação pelo monóxido de carbono presente na fumaça. O gás carbônico é um gás altamente tóxico, na verdade, em altas concentrações ele é até fatal [9–10]. Portanto, a “causa mortis” dos macacos foi hipóxia e isquemia8, resultantes da falta de oxigênio no cérebro destes animais [5].

Sem entrar no mérito da intenção dos pesquisadores, ou de quem encomendou esta pesquisa, temos aí um erro clássico de desenho experimental, que não é admissível nem para um estagiário. Essa é uma questão de falha grave de grupo controle! Esta pesquisa só estaria bem desenhada se o objetivo fosse avaliar os efeitos de asfixia, ou de intoxicação por monóxido de carbono. Para ter um grupo controle adequado para o experimento que se pretendia (de entender o potencial efeito tóxico da maconha no cérebro dos animais) o grupo controle precisaria ter ingerido a mesma quantidade de fumaça que os animais testados, mas sem os componentes químicos associados à maconha. Por exemplo, poderia ter inalado fumaça de papel. Para se ter ideia de como mesmo fazendo isso não teríamos garantia de que o efeito era mesmo da maconha, hoje em dia se tem planta “placebo” [9] de Cannabis contendo todos os elementos da planta, exceto os canabinoides [10], para serem

utilizadas em pesquisa clínica com maconha inalada [11]. Com o conhecimento que temos hoje sobre esta planta, é bem possível que o resultado fosse exatamente o inverso do que foi encontrado: a Cannabis poderia ter efeito protetor sobre os neurônios dos macacos…

Outra questão central dos trabalhos científicos é que eles devem ser replicados por outros pesquisadores. Esse é um dos pilares do método científico, que garante a robustez de uma descoberta científica. Quanto mais replicado for um determinado experimento, menor a chance dele ter sido obtido “por acaso” (nota 11 ver abaixo). Neste caso, no entanto, houve somente tentativas sem sucesso de replicação, todas de pesquisadores experientes e com condições melhores, mais controladas e com maior número de indivíduos do que o estudo original. Podemos citar como exemplos os estudos do Dr. William Slikker do National Center for Toxicological Research [12] e de Charles Rebert e Gordon Pryor, da SRI International [13]. Nenhum deles encontraram evidências de alterações físicas nos cérebros dos macacos expostos a doses diárias de maconha por até 1 ano. Quando uma pesquisa não é replicável, diz-se que ela é inconsistente, e a tendência é não ser mais considerada válida como parte do conhecimento científico. Neste caso, no entanto, parece que a história tem demorado bastante a “esquecer” deste estudo. Provavelmente porque a conclusão “Maconha mata neurônio” virou uma grande manchete. Claro que esse não é o primeiro, nem será o último estudo que não se consegue replicar, mas considerando o contexto em que foi conduzido e o erro primário no desenho experimental favorecendo uma conclusão “desejada”, minha opinião é que neste caso estamos diante de uma grande fraude científica.

Alguns toques a mais:

  • Veja este excelente apanhado histórico em português, feito pela revista Super Interessante. Burgierman DR, Nunes A. A verdade sobre a maconha. Super Interessante. 2002.
  • Cannabis — A maconha é o nome popular mais comum dessa planta, cuja nome científico é Cannabis sativa. Existem outras espécies da planta, conhecidas como Cannabis indica e Cannabis ruderalis. No entanto, para fins deste texto, sempre que mencionarmos “Cannabis” estamos nos referindo à planta da qual se prepara a maconha. A rigor, a maconha é um derivado da Cannabis, preparado a partir das partes aéreas da planta, majoritariamente a partir das flores, onde se concentram a maior parte dos compostos canabinoides psicoativos.
  • Pros interessados, esse texto do Departamento de História da Ohio State University conta de maneira detalhada os eventos históricos que culminaram com a proibição da maconha em meados do século XX 3. Siff S. The Illegalization of Marijuana: A Brief History. ORIGINS Current Events in Historical Perspective. 2014;7(8).
  • O “Tulane Study” foi publicado a posteriori neste relatório completo, incluindo outros estudos e pareceres.
  • O uso de animais de laboratório tem sido devidamente controlado desde meados do século passados nos Estados Unidos, mas foi só década de 80 que o mesmo ocorreu na Europa. Nos últimos 20 anos, muitos avanços foram realizados no sentido de reduzir o número de animais, refinar as estratégias experimentais e, quando possível, substituir os testes em animais por modelos in vitro. Os testes exploratórios realizados em macacos Rhesus descritos no “Tulane Study” provavelmente não seriam aprovados nos dias de hoje. No Brasil, desde 1983 existe o Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA) que defende o uso racional de animais de laboratório e ajudou a definir as diretrizes para acondionamento, reprodução e utilização de animais de laboratório em território nacional, considerando os preceitos éticos, o bem estar animal e as regulamentações internacionais. O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal foi instituído apenas em 2015, apesar de que as instituições de pesquisa já operavam com seus comitês regionais no uso de animais de experimentação (CEUA), alinhado com as regras internacionais.
  • Todo experimento precisa ter um grupo controle, contra quem o grupo experimental vai ser comparado. Um grupo controle ideal recebe uma intervenção tão próxima quanto possível da realizada no grupo experimental, excetuando-se o objeto de estudo em si. Neste exemplo, o correto teria sido expor os animais controle à fumaça inerte de outra planta qualquer, nas mesmas condições (aparelhos, frequência, intensidade e outros aspectos).
  • Desenho experimental é a maneira como os grupos experimentais serão constituídos, como serão realizadas as comparações e quais os procedimentos a que cada grupo será exposto. A qualidade do desenho experimental é diretamente proporcional à qualidade das informações que se consegue concluir daquele estudo. Um experimento mal desenhado pode ser considerado “inconclusivo” ou até invalidado. Ou seja, não é porque um determinado procedimento foi realizado por cientistas que ele é válido. Como em qualquer profissão temos os bons e os maus cientistas.
  • Hipóxia e isquemia são, respectivamente, baixo teor de oxigênio e falta de suprimento sanguíneo nos tecidos orgânicos.
  • Placebo é o nome que se dá a uma substância sem efeito terapêutico (inerte) utilizada para tratar o grupo controle. O efeito placebo é o nome que se dá efeito de “melhora clínica que se observa em pacientes que não estão tomando medicamento real, possivelmente decorrente apenas da atenção médica que recebem e da sua crença de que estão sendo devidamente tratados. Em pesquisa clínica, para ser considerado terapeuticamente válido, um medicamento precisa obter um efeito superior ao efeito do placebo.”
  • Canabinoides são as substâncias que produzem os efeitos característicos da Cannabis. Os principais são o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD).
  • Parece estranho, mas como o nível de confiabilidade em pesquisa científica é uma convenção estatística, todo resultado estatisticamente válido, ainda tem uma chance de ter sido obtido “ao acaso”, ou daquela observação ser falsa. Essa chance varia dependendo do desenho experimental e do tamanho da amostra, mas em biologia convencionou-se que uma diferença estatisticamente válido tem no máximo 5% de chance de ter sido obtida ao acaso, ou nível de significância 0,05. Para saber mais, leia sobre os valores de “alfa” e “p”.

Um mar de referências para quem quiser mergulhar no assunto:

[1] Burgierman DR, Nunes A. A verdade sobre a maconha. Super Interessante. 2002.

[2] Robinson R. O Grande Livro da Cannabis: Editora Zahar 1999.

[3] Siff S. The Illegalization of Marijuana: A Brief History. ORIGINS Current Events in Historical Perspective. 2014;7(8).

[4] Drug_Policy_Alliance. 2016; Available from: http://www.drugpolicy.org/new- solutions-drug-policy/brief-history-drug- war.

[5] Gieringer D. Marijuana Health Mythology. California NORML; 2011.

[6] National Commission on Marihuana and Drug Abuse. Marihuana: A Signal of Misunderstanding; First Report. Washington, D.C., EUA: 1972.

[7] National_Research_Council. Marijuana and Health. Washington, D.C., EUA: 1982. 8. Herrer J. The Emperor wears no clothes: Ah Ha Publishing; 1985.

[9] Gorman D, Drewry A, Huang Y, Sames C. The clinical toxicology of carbon monoxide. Toxicology. 2003;187(1):3.

[10] US Department of Health and Human Services. Carbon Monoxide Monography. 2012.

[11] Meijer ED, inventor; GW Pharmaceuticals Plant Patent for cannabinoid-free reference plant. EUA.

[12] Slikker W, Jr., Paule MG, Ali SF, Scallet AC, Bailey JR. Chronic marijuana smoke exposure in the rhesus monkey. I. Plasma cannabinoid and blood carboxyhemoglobin concentrations and clinical chemistry parameters. Fundamental and applied toxicology : official journal of the Society of Toxicology. 1991;17(2):321–34. Epub 1991/08/11.

[13] Rebert C, Pryor G. Chronic Inhalation of Marijuana Smoke and Brain Electrophysiology of Rhesus Monkeys. International Journal of Psychophysiology 1993;14.

Esse conteúdo é parte da publicação “Tudo Sobre Cannabis

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.