Maconha mata neurônio: A história se repete (3/3)

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
9 min readOct 24, 2017

Uma das características de uma boa história é que ela "cola na mente". A receita para uma boa história deve ser simples, direta, crível e concreta. Fácil de entender e memorizar. Se ela apelar aos nossos sentimentos… ainda melhor. Se for uma história de susto/surpresa e que dê um pouco de medo… brrrr, aí sim, você tem uma história vencedora.

Isso é o que o grande cientista Richard Dawkins chamou de "meme": uma pequena partícula de informação que "cola", é constantemente replicada e se perpetua, formando um pequeno bloco de cultura. http://www.fronteiras.com/artigos/evolucao-genes-memes-e-universalidade

Você sabia que o cientista Richard Dawkins foi o cunhador do termo "meme", e que ele não serve só pra coisas que viralizam na internet e gifs de cachorrinhos fofíneos?

Esses elementos estão muito presentes na principal história) e a mais aterrorizante delas) contada sobra a maconha: ela mata neurônios. Já imaginou? Uma droga potente, que causa dependência, e que mata neurônios. Simples assim: maconha.mata.neurônios. Essa mensagem é tão clara e visual que conseguimos praticamente enxergar os buracos se formando na cabeça daqueles usuários inconsequentes desta planta "maligna", é ou não é?

Bela lenda urbana, se eu conhecesse o autor dava um belo parabéns!, afinal essa história tem sido reverberada ao longo de pelo menos 50 anos. E pouca gente ousa questionar… afinal, "todo mundo sabe que é verdade".

Já contei nas duas partes anteriores (links abaixo) como esse mito se formou, agora vou mostrar um exemplo de como ele ainda se perpetua, mesmo na ciência.

Publicado em 3 partes
Parte 1: A origem do mito (
https://goo.gl/2DCj2h)
Parte 2: Então a planta não faz mal? (
http://goo.gl/MafrHH)
Parte 3: Essa que você está lendo.

~ Old habits die hard~

Estou lendo muito e muitos artigos sobre um dos temas mais polêmicos sobre os efeitos adversos da Cannabis, seu impacto na gravidez e o potencial de causar alterações nos bebês nascidos de mulheres grávidas. No jargão da toxicologia, esse efeito é chamado de "toxicidade reprodutiva". Meu interesse particular é entender um pouco mais sobre o riscos de se tratar mulheres em idade fértil com um eventual medicamento desenvolvido à base de Cannabis, mas a maioria da literatura científica nesse tema está relacionado ao abuso de drogas e dependência.

Em resumo, a maior discussão nesse campo é a seguinte:

1) Sabe-se que o sistema endocanabinoide tem um papel bastante importante na fisiologia reprodutiva e participa do neurodesenvolvimento, em parte "guiando" a maneira como os neurônios se conectam durante a formação do cérebro. Esse efeito é bastante claro em cultura de células, e mesmo em animais de laboratório, o tratamento de camundongos fêmeas grávidas com fitocanabinoides (como o THC) ou canabinoides sintéticos provoca diversas alterações na gravidez, parto e até algumas alterações significativas nos filhotes nascidas destas fêmeas. Os efeitos ocorrem particularmente em doses altas, na verdade até muito altas, se convertidas para a dose em humanos.

2) No entanto, quando se observa os dados clínicos, os estudos não são conclusivos, pois possuem muitos confundidores. Alguns estudos são feitos em usuárias que são moradoras de rua, de baixo nível sócio-econômico, com problemas nutricionais, usuárias de múltiplas drogas, uso concomitante de Cannabis com tabaco (que é comum em fumantes de um preparado conhecido como haxixe), e mesmo assim, quase metade dos estudos não mostram alterações significantes nos neonatos humanos. Nos poucos casos em que se observou alteração de peso dos neonatos, a redução de pesos foi considerada num intervalo considerado "normal".

Sabe qual é o estudo mais "limpo" e conclusivo sobre o assunto? Parece piada, mas é um estudo que acompanhou grávidas jamaicanas ao longo de toda a gravidez. Como é conhecido, é comum jamaicanas fazerem uso de Cannabis, inclusive por aspectos culturais ligados à religião rastafari. Assim, foi muito mais fácil para os autores deste estudo conseguirem acompanhar mulheres grávidas saudáveis durante o uso de Cannabis ao longo da gravidez. As jamaicanas deste estudo não eram moradoras de rua, tinham uma nutrição normal e não usavam outras drogas além da Cannabis, um cenário bem mais claro do que o dos outros estudos. Sabe o que eles descobriram? Que não houve alterações durante a gravidez, do tamanho ou peso dos recém nascidos, ou aumento de risco de nascimento prematuro.

Mulher jamaicana curtindo seu bebê saudável à beira mar.

No final das contas, a questão é que não há coerência entre os estudos em animais de laboratório e os estudos clínicos. Portanto, até que se prove o contrário, é importante ter cautela. E mais importante ainda, é se produzir ciência de boa qualidade a respeito do assunto.

Nesse busca por entender a potencial toxicidade reprodutiva dos canabinoides, eu me deparei com um artigo bastante interessante entitulado "Recreational use of marijuana during pregnancy negative gestational fetal outcomes: An experimental study in mice", publicado recentemente por um grupo de pesquisadores brasileiros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Resumo do estudo, disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27234314

Sabendo das dificuldades em se concluir a respeito dos efeitos da Cannabis fumada analisando os efeitos "sistêmicos" (chamados de intraperitoneais ou i.p. no jargão científico) em animais de laboratório, os autores fizeram os animais "fumarem" um cigarro de Cannabis. Ou pelo menos o mais perto que se pode chegar disso em um ambiente de laboratório. É um esforço admirável, eles construíram um dispositivo complexo para expor camundongos fêmeas grávidas à fumaça de Cannabis diariamente, por um curto intervalo de tempo. O objetivo foi tentar mimetizar de forma mais realista o uso recreativo de Cannabis por mulheres grávidas e enfim resolver a questão: fumar maconha durante a gravidez é realmente um grande risco para o bebê?

A pergunta é muito válida e legítima, e acredito que os autores tenham feito seus melhores esforços para tentar resolver a questão da melhor maneira possível. Além de criar o engenhoso dispositivo inalatório para camundongos, super controlado e bem feito, eles chegaram a bater na porta da polícia federal para pedir uma amostra de maconha… tudo feito dentro da lei e pelo bem da ciência, não é mesmo?

Desenho do projeto do inalador para cmundongos, retirado do artigo disponível em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0300483X16300749?via%3Dihub

O estudo foi elegantemente conduzido, inclusive dosaram um metabólito do THC na urina dos animais para provar que houve uma exposição adequada e usaram parâmetros válidos para tentar chegar às conclusões, como consumo de alimento, peso das grávidas e dos fetos, peso de órgãos importantes, número de filhotes, entre outros. No entanto, eles foram traídos por uma "pequena" cilada experimental: o grupo controle. O mesmo protocolo usado por aquele grupo de cientistas que expliquei na Parte 1 desse texto (https://goo.gl/2DCj2h) foi novamente usado para reiterar a ideia de que "maconha mata neurônio". Como é conhecido, a história se repete às custas da reprodução dos memes.

Sem entrar no mérito de discutir algumas "forçações de barra" estatísticas, como declarar que as fêmeas grávidas expostas à Cannabis tiveram uma redução no consumo de comida na primeira semana de exposição, e um aumento na segunda semana de exposição, sendo que ambas não apresentaram significância em relação ao grupo controle (ou seja, a rigor, são nulas), e fazer múltiplas comparações entre grupo exposto e controle, sem nenhuma correção estatística* , preciso fazer uma crítica bastante direta ao artigo: as conclusões a que ele chega são totalmente inválidas para a questão que se propõe.

Explico, como os autores quiseram reproduzir uma situação "análoga ao mundo real", o grupo de camundongos exposto à Cannabis foi forçado a inalar o produto da queima da planta enrolado em um papel (seda, no jargão dos usuários), ou seja, há inúmeros outros compostos tóxicos formados durante a queima e que nada tem a ver com a Cannabis em si, ou os canabinoides.

Print de parte da discussão do artigo

Até aí, "tudo bem", já que os próprios autores admitem isso na discussão do artigo, como podem ver no print abaixo, agora a grande questão é que para chegar a alguma conclusão válida neste estudo, você não pode simplesmente comparar com animais expostos ao ar filtrado sem queima nenhuma! Isso traz um olhar completamente enviesado ao estudo, e torna qualquer interpretação muito comprometida. A comparação válida nesse caso, seria com animais expostos a alguma fumaça, na mesma proporção. Poderiam pelo menos ter deixado o papelzinho da seda para ter um grupo controle um pouquinho melhor…

Outro print de parte da discussão do artigo

Ainda assim, a grande maioria dos resultados foram negativos. Houve alterações mais expressivas no curioso índice "número de filhotes machos por ninhada" e no peso das grávidas, após um cálculo matemático e cálculo de "peso maternal líquido", que eu honestamente desconhecia, mas imagino que seja usual em estudos de obstetrícia.

Tabela de resultados do estudo

Os demais resultados como peso maternal, peso do útero, número de filhotes por ninhada, número de fetos mortos, índice de implantação de embriões, número de reabsorções de embriões, número de corpos lúteos e peso da ninhada foram todos negativos. Além dos mencionados acima, só aparecem como resultado positivo os parâmetros de peso ao nascimento e peso da placenta. Curiosamente, observe que o "n", ou número de animais observados foi cerca de 6 vezes superior ao dos outros parâmetros deste trecho da tabela, e ainda assim com uma estatística limiar.

Tabela de resultados do estudo (continuação)

Quando são necessários tantas observações para se observar um efeito estatístico, dizemos que se trata de um fenômeno subliminar, um fenômeno observado em um protocolo com pouca força estatística. Em bom português, se um fenômeno só aparece com um “n” desproporcionalmente maior do que os outros, você está na prática usando dois pesos e duas medidas para chegar às suas conclusões.

A meu ver, a interpretação mais honesta deste estudo é que ele avaliou o efeito da fumaça sobre camundongos fêmeas grávidas, e isso é bastante coerente com os resultados encontrados, afinal, já se sabe dos efeitos tóxicos de vários dos componentes listados no print acima, como monóxido de carbono, tolueno, amônia, hidrocarbonetos aromáticos… à Cannabis resta, no mínimo, o benefício da dúvida. Até porque a estimativa das doses de THC inaladas é cerca de 100 vezes inferior a dos outros estudos que mostraram algum impacto na gravidez. Se, hipoteticamente pudéssemos concluir algo a respeito da Cannabis neste estudo, claramente não se pode concluir absolutamente nada em relação ao THC ou qualquer outro componente canabinoide da planta (o que os autores honestamente admitem no estudo).

O que acho curioso é ver o mesmo erro se repetindo, uma coisa tão crucial quanto um desenho experimental decente sendo absolutamente ignorada. E nesse caso, nem era tão difícil, afinal estamos falando da comparação de apenas 2 grupos experimentais. Agora, na manchete, vulgo título do estudo, está lá "Resultados negativos da maconha sobre a gestação", baseado em um estudo que não tem o mínimo de critério para concluir algo a respeito do que se propõe tema.

A história se repete… e o meme da planta maligna permanece e aparentemente até se reproduz, alimentado por falsas evidências!

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

Alguns toques a mais:

Sistema endocanabinóide: um sistema de neurotransmissão endógeno (interno do nosso organismo), presente em cerca de metade das nossas células cerebrais e várias outras partes do nosso organismo, que realiza várias funções fisiológicas importantes agindo nos mesmos receptores onde os compostos canabinoides da maconha se ligam, como o THC.

* A rigor, quando você faz múltiplas comparações em um estudo, precisa haver uma correção estatística, se não você aumenta em muito a chance de ocorrer um resultado ao acaso. Pense bem, a ciência é probabilística, se jogarmos 2 dados 100 vezes pra cima, pelo menos uma vez você conseguirá uma dupla de 6. Isso não é sorte, é probabilidade. Sorte é tirar na primeira tentativa… ou ainda melhor, na maioria das tentativas. Entendeu porque nós cientistas repetimos os experimentos? :-)

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.