"Magrinho, mas triste" — a história do dia em que previ a retirada de mercado do medicamento Accomplia

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
10 min readJun 29, 2021

Bloquear os receptores canabinoides lhe parece uma boa ideia? Ao que tudo indica, pelo que sabemos hoje, parece ser algo pelo menos arriscado. Afinal, uma importante quantidade de funções fisiológicas relevantes são moduladas pelo sistema endocanabinoide. Por consequência, o bloqueio destes receptores pode trazer resultados indesejáveis, e no final das contas, quebrar o equilíbrio fisiológico do organismo, conhecido como homeostase.

Essa afirmação parece até óbvia hoje em dia para qualquer defensor dos canabinoides, ou um estudioso que vá um pouco além de "tentar entender o CBD", que como sempre digo, é apenas a superfície. Mas em 2008 não era.

Naquela época, parecia uma ótima ideia, tanto é que a farmacêutica Sanofi-Aventis apostava suas fichas nessa que deveria ser a "superpílula" que resolveria os problemas de obesidade. A euforia era imensa, como mostra esta capa de revista da época…

Quer saber mais detalhes desta história? Veja nesse post

Só que não era bem assim. Em outubro de 2008, com menos de 6 meses de comercialização, este medicamento era retirado do mercado no Brasil (assim como em 18 outros países) após a alegação de que ele aumentava as chances de efeitos colaterais, trazendo riscos aos paciente. Em agosto a Agência Européia de Medicamentos (Emea, na sigla em inglês) recomendou a suspensão alegando que os benefícios potenciais do remédio não compensam os riscos que ele tem apresentado.DOBRO DE RISCOEm comunicado, a Emea afirma que pacientes obesos que tomam o Acomplia têm o dobro de risco de desenvolver desordens psiquiátricas quando comparados àqueles que tomam uma substância inócua (o chamado placebo)", o medicamento chegou a ser comercializado em 32 países, conforme matéria do Estadão na época.

Contrariando as evidências das capas de revista no Brasil, eu havia escrito um artigo cantando a pedra de que esse medicamento era pouco seguro e que tinha chances de resultar em efeitos colaterais perigosos. Dois meses depois, ele era retirado do mercado. Foi a minha primeira análise certeira, o que me orgulha bastante depois desse tempo todo. Na época eu tinha apenas 26 anos e estava iniciando a minha carreira internacional na Alemanha.

Abaixo, você tem na íntegra o conteúdo do texto "Magrinho, mas triste" que publiquei na revista Ciência Hoje, que infelizmente já saiu de circulação. E abaixo as imagens da publicação original.

Esse era o artigo original, que virou história. Hoje só se encontra no slide share, porque a Ciência Hoje infelizmente saiu de circulação. Hoje temos esta página do instituto, mas ao que me parece o conteúdo impresso "morreu" https://cienciahoje.org.br/ Obs: me perdoem a cabeleira :-)

Magrinho, mas triste

Entenda a lógica por trás dos efeitos colaterais do rimonabant, o antagonista canabinóide que promete ser a nova vedete dos medicamentos para emagrecer.

Desde a primeira vez que apresentei publicamente meus estudos em psicofarmacologia de canabinóides, um questionamento constantemente vem à tona: “Como você acha que estes resultados em animais podem se traduzir em algo significativo para os seres humanos?”. Nada mais apropriado. Além da desgastada justificativa de que nós cientistas utilizamos os modelos animais para compreendermos a estrutura e dinâmica biológica do organismo vivo, o uso de animais de laboratório com o intuito de desvendar potencialidades terapêuticas inovadoras me parece ser essencial.

Com o recente lançamento do rimonabant (Acomplia®), o primeiro antagonista canabinóide (bloqueador dos receptores canabinóides tipo CB1) no mercado farmacêutico brasileiro, dediquei-me a (re)ler os estudos clínicos que embasaram sua aprovação em mais de 20 países como um medicamento original para o tratamento da obesidade. Meu objetivo foi tentar traçar um paralelo entre os resultados que nosso grupo de pesquisa e diversos outros dentro e fora do Brasil têm obtido na pesquisa pré-clínica em animais de laboratório e os efeitos psicológicos/comportamentais relatados pelos pacientes que vêm fazendo uso dessa substância. Interessante notar que este medicamento nascido sob o código experimental SR141716A e rebatizado segundo as iniciais de um dos pesquisadores que o sintetizou (Rinaldi-Carmona et al) começa a ser comercializado no Brasil cerca de 14 anos após a primeira descrição de seu mecanismo de ação pioneiro, em 1994.

O anti-maconha

A tentação é grande, mas, farmacologicamente falando, não é correto afirmar que o rimonabant provocaria efeitos opostos ao da maconha. Primeiro, porque a maconha é uma planta (Cannabis sativa) que além do principal canabinóide psicoativo, o delta-9-tetrahidocanabinol (delta-9-THC), possui pelo menos cerca de outros 60 compostos com ação canabinóide, sem falar em diversos outros compostos flavonóides e terpenóides. Segundo, porque fármacos como o rimonabant bloqueiam os receptores canabinóides, impedindo a ação de substâncias canabinóides endógenas produzidas pelo nosso organismo somente quando este sistema é ativado. Nesta perspectiva, a grande diferença entre a ativação do sistema endocanabinóide e os efeitos canabinóides da maconha seria que os endocanabinóides agem quando e onde forem “necessários” no organismo, ao contrário da maconha que agiria indiscriminadamente tanto no cérebro quanto em órgãos periféricos.

Hoje em dia já se sabe que o sistema endocanabinóide está envolvido nas mais diversas funções do nosso organismo, indo desde efeitos periféricos anti-inflamatórios (primariamente receptores CB2), de inibição da dor, até efeitos cerebrais como aumento do apetite e manutenção da homeostase cerebral (o “equilíbrio” da atividade dos neurônios). Foi justamente a propriedade do rimonabant de inibir os mecanismos canabinóides de estimulação do apetite que atraiu os olhares de cientistas do mundo todo interessados nesse grande filão do mercado farmacêutico. Além disso, há uma grande vantagem do rimonabant em relação aos outros medicamentos utilizados para emagrecer, pois ele parece inibir o armazenamento de gordura na região abdominal e contribuir para a produção do HDL, o “bom colesterol”, revelando potenciais benefícios sobre os sistemas cardiovascular e endócrino.

No entanto, como qualquer medicamento de que se tem notícia, o rimonabant não está livre de produzir efeitos colaterais. Principalmente, considerando que os receptores em que age estão envolvidos em diversas funções fisiológicas, é de se imaginar que o bloqueio crônico desses receptores possa resultar em efeitos indesejáveis. Dentre os diversos sintomas classificados sistematicamente pelos pesquisadores envolvidos nos estudos clínicos do medicamento, os mais preocupantes foram o aumento de ansiedade e depressão, muitas vezes acompanhado de irritabilidade e insônia. Importante lembrar que pacientes com histórico prévio de ansiedade ou depressão foram retirados do estudo antes de começarem a receber o tratamento, de maneira que o aparecimento destes sintomas muito provavelmente reflete um efeito farmacológico do medicamento, gerando um estado psiquiátrico “de doença” ao invés de um estado “de saúde”. Embora tenha ocorrido em uma parcela pequena das pessoas que tomaram o rimonabant cronicamente, é bastante preocupante que alguns indivíduos apresentaram ideações suicidas, expressando o desejo de acabarem com suas vidas de maneira violenta. Mas voltando ao objetivo inicial, o que isso tudo tem a ver com os testes em animais de laboratório? Se os testes pré-clínicos têm mesmo alguma validade, esses efeitos “prejudicias” do rimonabant não deveriam ter sido previamente detectados?

Interação com o estresse

Sim, e eles foram. Desde o seu descobrimento, o rimonabant vem sendo testado em animais de laboratório em diversos testes preditivos para efeitos neuropsiquiátricos. O que já se sabe há bastante tempo é que, apesar de um certo receio dos pesquisadores em “traduzir” esses testes para os possíveis sintomas em humanos, o rimonabant provoca sim um quadro de sintomas semelhantes à ansiedade e depressão em camundongos e ratos, principalmente se testados sob situação estressante. Uma breve explicação sobre os testes pode facilitar a compreensão do leitor.

Em laboratório, a ansiedade é majoritariamente avaliada em testes que geram situações de conflito, em que o animal precisa “decidir” entre se arriscar e explorar um ambiente desconhecido ou permanecer escondido no ambiente protegido e seguro. Já a depressão é comumente avaliada em testes que avaliam a vontade do animal de sobreviver frente a um desafio natural. O que se sabe é que animais que estejam ansiosos e/ou depressivos acabam apresentando um perfil comportamental mais passivo, tendendo a procurar os lugares protegidos (ansiosos) e não tentando lutar pela sua sobrevivência (depressivos). A administração do rimonabant provoca estados de ansiedade e depressão nos animais quando o teste realizado envolve uma situação estressante. Nos testes de ansiedade, por exemplo, o estresse pode ser gerado pelo aumento da iluminação do ambiente, que é desagradável aos roedores. Essa sutil modificação acentua o efeito ansiogênico do bloqueio de receptores canabinóides. Tudo isso acontece, porque o sistema endocanabinóide foi moldado evolutivamente para proteger o organismo, de maneira que participa de uma reação adaptativa aos efeitos do estresse.

Esse artigo nos dá uma boa ideia do que estava em jogo, e não era brincadeira.
Ideação suicida e de fato, suicídios, foram registrados nos indivíduos obesos que participaram dos estudos. Isso nos dá uma ideia da importância dos receptores CB1 canabinoides para o bom funcionamento cerebral.

Como tudo na vida, o que comumente chamamos de estresse tem o seu lado bom e o seu lado ruim. Baixos níveis de estresse são saudáveis e nos deixam alertas para realizar tarefas importantes e que exigem a nossa atenção; níveis altos, porém, geram uma situação de grave abalo psicológico. Aparentemente, o sistema endocanabinóide só é ativado quando o fator estressor se apresenta em níveis bastante altos ou contínuos, protegendo assim o indivíduo contra os efeitos maléficos do estresse. Além disso, nosso grupo tem estudado no Brasil a participação do sistema endocanabinóide na flexibilidade comportamental, situação em que por conta de uma alteração no ambiente, o indivíduo precisa se reorganizar e passar a se comportar de outra maneira. Em linguagem científica, esse processo é chamado de extinção da memória e tem uma relacao direta com a adaptação ao estresse. “É como se você retornasse do trabalho ou escola todo os dias pelo mesmo caminho, mas em certa ocasião há um engarrafamento no trânsito e você precisa repensar o seu caminho para casa”. Interessante notar que essa mudança de estratégia comportamental é uma função fisiológica que necessita fundamentalmente dos receptores canabinóides, visto que seu bloqueio farmacológico ou deleção gênica prejudicam grandemente o desempenho deste tipo de tarefa pelos animais de laboratório. Por outro lado, a ativação dos receptores canabinóides, mesmo por substâncias exógenas (que ativam os receptores, mas não são produzidas pelo organismo — o delta-9-THC, por exemplo), promove uma facilitação da flexibilidade comportamental, que em outras palavras pode ser considerado um processo de re-aprendizado. Imagine só, viver numa sociedade tão dinâmica quanto a nossa, em que você percebe o mundo mudando a todo o momento, e ter grandes dificuldades para se adaptar a esse ritmo. Não é difícil imaginar que estaríamos sujeitos a grande desconforto em decorrência das pressões cotidianas. Brincando, eu costumo dizer que a falta de flexibilidade comportamental faz com que a pessoa fique “teimosa”, mas poderia seriamente supor que com o passar do tempo uma substância com esse efeito possa provocar uma certa intolerância no indivíduo ou até mesmo um sentimento de incompatibilidade com o mundo que o cerca. Daí poderiam hipoteticamente surgir respostas emocionais exageradas, como por exemplo, as ideações suicidas já comentadas.

Existem diversos fatores que, combinados, contribuem para que um antagonista canabinóide provoque um desequilíbrio no sistema emocional do indivíduo. No entanto, nos resta avaliar a relação custo/benefício em um tratamento como esse. A própria empresa que produz o medicamento alerta que o rimonabant não é recomendado para quem deseja simplesmente “perder uns quilinhos para o verão” ou para “aquela festa especial”; apesar dos efeitos adversos possíveis, certamente há de se considerar esse medicamento como uma opção terapêutica em condição de obesidade patológica, que traz inúmeras e perigosas conseqüências para a saúde do indivíduo. O alerta serve para conter um pouco do entusiasmo exagerado que vem surgindo na mídia ultimamente, gerando um grande alvoroço e busca a todo custo (e preço) de cada novidade que aparece nas farmácias. Serve também, como um exercício, para que nós cientistas nos “antenemos” nas conseqüências de nossos estudos e da grande relevância dos estudos em animais, trazendo uma base mais racional para a prática terapêutica. A ciência importante se faz passo a passo, com muito trabalho e dedicação, mas a recompensa é saber que ela pode trazer avanços inimagináveis para a qualidade de vida das pessoas.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.