MyCannabisCode: como saber se esse teste é pra mim?

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
6 min readNov 6, 2020

Ótima pergunta. O teste específico para canabinoides foi desenhado com o principal intuito de auxiliar a prescrição médica, ou seja ele é usado num contexto de uso medicinal de Cannabis, embora claro que as informações também sejam úteis para um usuário curioso e em busca de auto-conhecimento.

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O legal foi que pudemos desenvolver esse teste “do zero” usando o que há de melhor na literatura científica mundial, mas ainda mantendo um alto grau de “tradução” dessa informação de maneira interessante, bastante visual e com linguajar que seja o mais acessível possível e possa gerar ações, como a escolha dos melhores produtos. Ainda assim, se o médico tiver interesse, a informação genética também é apresentada nos mínimos detalhes.

Minha opinião é um pouco enviesada, porque eu realmente acredito no valor da medicina de precisão. Acredito que conhecer profundamente a biologia do paciente antes de intervir para compensar seu estado de saúde de maneira personalizada ainda vai ser tornar o padrão para qualquer tratamento crônico que se faça. Na verdade, acredito que no futuro próximo, todos teremos estas informações como subsídio para agir preventivamente, e o médico saberá qual a melhor escolha terapêutica mais adaptada à biologia do paciente de antemão. Quem viver verá. Isso dito, nós já temos opções interessantes para viver a medicina de precisão hoje, com as ferramentas do presente.

Acredito que conhecer profundamente a biologia do paciente antes de intervir para compensar seu estado de saúde de maneira personalizada ainda vai ser tornar o padrão para qualquer tratamento farmacológico.

Há cerca de 1 ano atrás iniciei o desenvolvimento do MyCannabisCode com uma empresa parceira em Portugal e estamos lançando simultaneamente lá na Europa e aqui no Brasil. Nos EUA e Canadá já existem alguns testes semelhantes, porém não iguais. A maioria ou exagera no tipo de interpretação que traz, ou é muito pouco consistente. É comum que eles sejam adaptados pra realidade regulatória dos seu país de origem e tragam informação por exemplo, a respeito de uma determinada linhagem específica de Cannabis, como se isso fosse possível à luz do que se sabe hoje a respeito da farmacogenômica de canabinoides. Na verdade, quando a gente fala de ciência de verdade, mesmo a nomenclatura “usual” de linhagens é questionada, uma vez que costuma ser bastante inconsistente entre diferentes fornecedores.

Vou falar em português bem direto: não há nem um mísero artigo em toda literatura científica que consiga associar um SNIP somente a uma determinada variedade genética de Cannabis. Isso é uma falácia. Pode-se inferir a respeito de composição, e basicamente a respeito do metabolismo dos principais princípios ativos — CBD e THC — além da suscetibilidade aos efeitos adversos. Sabe porque eu posso afirmar isso? Porque eu li todos os artigos junto com o time que desenvolveu o MyCannabisCode, simples assim.

Outra falácia comum no ramo da farmacogenômica é a argumentação de que “o meu teste tem mais genes” dessa maneira mesmo, assassinando os conceitos básicos. Legal, mas avaliar mais SNPs é necessariamente melhor? Depende. Certamente vai fazer um teste ficar mais caro e mais “completo” na percepção do público e é um ótimo chamariz de vendas, mas a verdade é que tem vários pontos que impactam a inclusão de um determinado alvo em um determinado painel de farmacogenômica. Podemos mencionar por exemplo, o “tamanho de efeito” percebido na pesquisa que descreve a importância daquele gene, número de indivíduos avaliados, frequência na população, ou mesmo polimorfismos genéticos que afetam exclusivamente um determinado gênero ou etnia.

Por exemplo, considere a variação genética do gene KIAA1324L/GRM3 associada à ocorrência de esquizofrenia, que certamente é um traço importante para ser avaliado na no contexto de Cannabis, mas descrita apenas em judeus Ashkenazi. Faz sentido ter uma avaliação como essa em um painel genético? De novo, depende. Mas há quem use subterfúgios como esse, incluir alvos raros ou com relevância somente para uma determinada população muito restrita para “contar pontos”. Isso sem falar da inclusão de alvos com pouco valor preditivo ou nível de evidência. Existe um guia do FDA sobre o que é considerado consistente e o que não é em termos de evidências farmacogenômica, acho que vale a consulta, pros que quiserem mergulhar fundo no tema. A propósito, também temos um teste bastante completo de farmacogenômica consistente com o guia do FDA, que é o MyMedCode.

O que eu comentei é apenas um exemplo, existem testes melhores e outros nem tanto, mas o meu objetivo de verdade era lhe dar as condições de avaliar por si mesmo e entender que:

  1. Quantidade não é qualidade. Apenas trazer “mais genes” não significa que ele avalie melhor a biologia do paciente. Há um risco em se trazer “alvos quaisquer” para dar volume. Um teste precisa ser assertivo e esse é um trabalho que exige consistência.
  2. A indicação de produtos depende bastante do país em que o teste será comercializado. No Brasil, por exemplo, falar de recomendação de linhagem de planta é completamente irreal. Sem nem entrar no mérito da fundamentação científica, qual é o paciente que pode se dar ao luxo de escolher uma determinada linhagem? Infelizmente, muito poucos.

Certamente há espaço para melhorias, e o bonito da “competição” é ver o mercado evoluir e o paciente ganhar com isso. A ciência nesta área está em franca evolução. Mencionando algumas curiosidades, por exemplo, temos muito mais genes descritos em associação com efeitos adversos (e particularmente dependência) do que genes associados a benefícios medicinais ou eficácia dos princípios ativos. Quer dizer então que há maior influência da genética sobre a dependência do que sobre, vamos dizer, o efeito do CBD sobre a redução de crises epiléticas? Provavelmente não, mas é difícil dizer, pois há um viés bastante grande na literatura científica, visto que historicamente os canabinoides vinham sendo muito mais pesquisados no contexto do abuso de drogas.

Ah, aliás, aqui vale um adendo de uma outra “pegadinha” que já vi em testes genéticos por aí: a associação com uma patologia específica. Ex: “vou te indicar a linhagem que você vai usar para reduzir a dor crônica”. A base de uma afirmação como essa tendo a genética como base é muito inconsistente. Em geral, o que fazem é inferir a partir de um dado de predisposição à dor crônica, que uma determinada linhagem referida por pacientes para o uso da dor, deveria ser apropriada para esse paciente. Explico: só porque alguem tem uma variação genética associada a uma patologia, não quer dizer necessariamente que ele vá desenvolver a patologia em questão. O link disso com uma determinada linhagem de Cannabis é ainda mais distante, cai no âmbito da ficção. Neste caso, do tipo ficção não-científica.

O que vale usar como base para isso são repositórios de informações sobre pacientes tipo o Lift.co ou a sessão de Cannabis do WebMD e coisas do tipo (que aliás são muito interessantes) em uma abordagem de big data. Mas também há uma distância grande entre a opinião de meia dúzia de pacientes e a consistência para recomendar ou sugerir para algum paciente fazendo uma associação direta. Estas coisas precisam ter volume e há método para se trabalhar com data analytics de dados de saúde. É uma grande tendência, sem dúvida, e vai ser muito legal ver a evolução dessa área. Hoje, ainda serve apenas como informação qualitativa.

É frustrante, eu sei, mas mesmo a associação de genética com canabinoides minoritários nos dias de hoje é absolutamente equivocada. Eu sou um entusiasta da área, mas simplesmente não dá, porque não tem evidência. Aguarde o próximo post então vamos "dar a letra" sobre o que tem de real e cientificamente consistente sobre farmacogenética dos canabinoides.

Conteúdo originalmente publicado aqui nesse post.

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.