CBD é mesmo anti-convulsivante? Conheça as primeiras evidências da história

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
8 min readOct 27, 2017

Olha, não é de hoje que se tem essa discussão sobre o potencial anti-convulsivante da Cannabis. Esse é um dos usos medicinais descritos desde o século XIX, quando o médico irlandês William O'Shaughnessy voltou da Índia com amostras da planta e derivados, introduzindo-a na cultura médica ocidental. A wikipedia é uma boa referência rápida para mais detalhes dessa página da história (https://goo.gl/boR13d), mas pra quem tiver interesse de verdade no tema, eu sugiro esse texto do Dr. Alan Grinspoon (https://goo.gl/tTZdJE).

Na história da ciência moderna, o primeiro relato de efeito anti-convulsivante de que se tem notícia veio das mãos de um personagem bastante conhecido na história brasileira da Cannabis: o professor Elisaldo Carlini, da UNIFESP, antiga Escola Paulista de Medicina.

Nesse artigo, o Prof. Carlini e os demais autores mencionam os estudos pioneiros de O’Shaughnessy e estendem as observações de que outros autores também reconhecem a Cannabis e seu principal componente psicoativo (tetrahidrocanabinol, o THC) como tratamentos anti-epiléticos, com evidências em seres humanos e animais de laboratório. Essa opinião é válida mesmo à luz dos conhecimentos de hoje, contudo, sabemos que o THC possui uma faixa terapêutica mais limitada do que o CBD, podendo causar provocar crises de ansiedade e alterações sensoriais bastante acentuadas quando utilizado em doses agudas exageradas. Por isso é que, já naquela época, o canabidiol (CBD), que é um outro fitocanabinoide presente na planta, despertou o interesse dos pesquisadores. A promessa era de que o CBD poderia ter efeito anti-epilético, com um risco menor de qualquer efeito adverso psicoativo atribuível ao THC.

Partindo desta premissa, o Prof. Carlini iniciou seus estudos em animais tentando mostrar que extratos de Cannabis, que contém vários compostos além do THC, conseguem reduzir o número de convulsões induzidas em animais de laboratório. Em estudo solo no seu próprio laboratório e em uma curiosa parceria com o grande neurocientista argentino Prof. Ivan Izquierdo, que mais tarde adotou o Brasil como sua casa, o Prof. Carlini realizou uma série de estudos demonstrando que extratos de Cannabis sativa e o CBD eram mais potentes do que os medicamentos anti-epiléticos disponíveis na época em prevenir crises e letalidade em modelos animais de indução de convulsões com estímulos elétricas, audiogênicos ou farmacológicos. Big splash!

Alguns dados originais do estudo estão aí embaixo pra quem quiser ver com os próprios olhos. É uma redução bastante drástica nos parâmetros de convulsões e mortes no modelo animal… Até me dei ao trabalho de colocar os dados da tabela em gráfico, para facilitar a visualização. Naquela época, década de 70, os gráficos eram feitos na mão e davam trabalho pra caramba, então resolvi ajudar o Prof. Carlini e colocar os dados no gráfico, agora que fazemos tudo rapidamente no computador :-)

A parte do extrato de Cannabis aparece de maneira um pouco mais "escondida" no artigo, sendo apenas mencionada no texto. Vocês não precisam acreditar em mim, está aí abaixo a transcrição do texto do artigo. Traduzindo e resumindo, uma dose de 20 mg/kg do extrato reduziu o número de convulsões audiogênicas nos ratos de laoratório. O efeito é marcante, mais uma vez ajudei o Prof. Carlini e coloquei os dados em gráficos para ficar mais claro.

Pra sorte da ciência, esses dados em animais eram só o começo. Logo no mesmo ano, uma equipe clínica liderada pelo Prof. Carlini publicou o piloto do estudo que veio a ser o primeiro estudo clínico randomizado devidamente controlado que cravou o CBD como terapia anti-convulsivante.

Infelizmente não consegui acesso a este estudo-piloto, mas está ai a referência pra quem quiser ir atrás, e por favor me dê de presente, porque merecia um quadro. Foi publicado no Brasil e por brasileiros o primeiro artigo sobre o tema, de que se tem notícia na face da terra.

Mas o estudo que ficou mais famoso, foi o publicado logo em sequência, 3 anos após, pelo grupo brasileiro juntamente com uma equipe da Universidade Hebraica de Israel, incluindo o "pai de todos" da ciência canábica, o Prof. Raphael Mechoulam. São muitas mentes de primeira linha atraídas pelo tema da Cannabis, não é mesmo?

Esse é o primeiro estudo randomizado controlado de canabidiol (CBD) em pacientes epiléticos, você pode encontrá-lo completo escaneado em https://goo.gl/hPkdWY

Esse sim veio a ser o estudo mais influente dado seu pioneirismo e, acima de tudo, o rigor científico. Apesar de pequeno esse estudo foi conduzido dentro do rigor característico de estudos clínicos para registro de medicamento da indústria farmacêutica. No jargão da indústria, ele seria o equivalente a um estudo clínico de Fase 2 randomizado controlado por duplo-cego*. Os voluntários foram devidamente diagnosticados,e passaram por análises clínicas, neurológicas, medidas de eletroencefalograma (EEG), eletrocardiograma (ECG) e exames completos de sangue e urina com frequência semanal. Então, cá entre nós, dá pra fazer maior ou mais sofisticado, mas não dá pra criticar o rigor ou a validade deste estudo. Simples assim, não dá.

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Os pacientes foram tratados com uma dose de 1,5mg/kg de CBD por via oral, em cápsulas, duas vezes ao dia, durante 30 dias. Portanto, a dose diária de CBD foi de 3 mg/kg, cerca de 200 a 400 mg/voluntário, segundo os autores.

Eles puderam tratar os pacientes com estas doses porque já havia bastante evidência de segurança pré-clínica publicada anteriormente: 1) camundongos foram tratados por 90 dias com até 50 mg/kg por via i.p. ou até 20 mg/kg por via oral; 2) ratos foram tratados por 27 dias com 50 mg/kg por via oral; 3) coelhos foram tratados por via intravenosa com até 1000 mg/kg e não houve qualquer indício de toxicidade. Mais do que isso, havia evidência também de ausência de toxicidade após tratamentos com: 1) 160 mg/dia por via oral; 2) até 0,15 mg/kg (aprox. 10 mg) por via inalatória; 3) 30 mg injetados na veia; 4) 10 mg/dia por 21 dias em voluntários humanos. É bastante coisa, não é? E hoje em dia, ainda se pede teste pré-clínico em animais para se provar a segurança do CBD… é dose? É, mas isso é assunto pra outra hora.

Os resultados desse estudo são muito impressionantes: o CBD foi em geral muito bem tolerado e os voluntários não relataram nenhum sinal de efeito psicotrópico (o popular "ficar chapado" que se espera com canabinoides). Os exames neurológicos, fisiológicos, de sangue e urina estavam absolutamente normais em todos os voluntários do estudo antes, durante e após os 30 dias de tratamento. Sabe quando isso acontece em estudos de desenvolvimento de medicamentos? Quase nunca!

Dados os resultados muito positivos dessa primeira fase, com 16 voluntários e 30 dias de tratamento com CBD, os autores realizaram uma segunda etapa com 15 pacientes epiléticos que seriam tratados cronicamente por 135 dias (4,5 meses). E aí, de novo, o tratamento se msotrou absolutamente seguro e houve sinais bastante claros de eficácia.

Em um grupo de 8 pacientes do grupo placebo, apenas 1 melhorou ao longo do curso do estudo, enquanto, adivinhem, dos 7 pacientes no grupo tratado com CBD, apenas 1 não melhorou. É exatamente o oposto. Pra quem tiver interesse mais aprofundado, os pacientes foram avaliados por uma escala de 0 a 3 em que 0 significava melhor completa e 3 nenhuma melhora. A mediana do grupo tratado foi 1, enquanto a mediana do grupo placebo foi 3! E 3 dos 7 pacientes apresentaram melhora completa!

Escala utilizada no estudo. O grupo tratado com canabidiol por 4,5 meses apresentou uma mediana de 1 (melhora parcial), e 3 dos 7 pacientes apresentaram melhora completa!

Abaixo a tabela completa com a avaliação completa semanal de todos os voluntários avaliados no estudo. Perceba a grande quantidade do número 3 (nenhuma melhora) nas avaliações dos indivíduos do grupo placebo e o grande quantidade de números 0 (melhor absoluta) e 1 (melhora parcial) no grupo tratado com CBD! A diferença é marcante.

E sabe quais foram os efeitos adversos apresentados? Basicamente sonolência! Ela foi presente por 43% dos voluntários que tomaram CBD, mas cá entre nós, esse é um efeito adversos bastante comum em tratamento neurológicos, e é muito razoável considerando os benefícios de redução das crises convulsivas. Cerca de metade dos pacientes tratados com CBD no estudo como um todo deixaram de apresentar convulsões! É um belo custo-benefício, não é? A sonolência inclusive é algo que pode ser considerado um efeito positivo, e até ser usado como tratamento em um medicamento devidamente desenhado para este fim.

Importante mencionar que o CBD foi usado como terapia add-on, isto é, havia o tratamento com um medicamento anti-epilético tradicional antes da seleção para o estudo e este tratamento foi mantido. De toda maneira, é assim mesmo que a maioria dos pacientes tem tomado produtos à base de CBD hoje em dia. À medida em que acumulamos mais experiências positivas, a tendência é que ele se torne um tratamento de primeira escolha para epilepsia, dado sua eficácia com baixíssimo perfil de efeitos adversos comparados com as outras alternativas.

Abaixo, de presente, um vídeo com uma aula do próprio Prof. Carlini contando essa história. Divirta-se!

Aula do Prof. Carlini

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

Alguns toques a mais

*Estudo duplo-cego é quando nem as pessoas que distribuem o tratamento nem os avaliadores dos pacientes sabem quem pertence a qual grupo experimental. É o mais alto rigor possível de estudo dentro das boas práticas de condução de estudos clínicos.

Um toque importante: Os pesquisadores mencionados aqui vieram a se tornar "personagens" muito importantes na história da farmacologia brasileira. Alguns anos depois o Prof. Carlini veio a ser o orientador do Prof. Reinaldo Takahashi, que me orientou durante a pós-graduação em Farmacologia na UFSC. De uma certa maneira, sou um "neto científico" do Prof. Carlini, pertencendo muito honrosamente à sua linhagem na farmacologia.

Prof. Elisaldo Carlini, o verdadeiro pioneiro da pesquisa com canabidiol. Do Brasil para o mundo.

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Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.