O efeito Entourage

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
8 min readApr 12, 2018

O termo foi originalmente cunhado em artigo do pesquisador israelense Shimmon Ben-Shabat e sinaliza uma visão muito interessante de um fenômeno que ocorre no sistema endocanabinoide: a "cooperação" entre diferentes ligantes. O termo é de origem francesa, e em português poderia ser traduzido como "comitiva" (que tal gangue ou tchurma?).

Essa sinergia é um ponto bastante discutido em fitoterapia, e é uma das potenciais explicações de porque “princípios ativos” de plantas podem ter efeitos diferentes do que seus correspondentes isolados ou sintéticos.

Farmacologicamente falando, a sinergia é uma matemática complexa, em que 1+1 não é igual a 2. Ou seja, quando há sinergia o efeito da combinação de duas moléculas é diferente do que se imaginaria pela soma de suas massas. Abaixo um exemplo de sinergia, ou "efeito entourage", se preferir, que vem de fitocompostos, mas não tem nada a ver com canabinoides (pra quem pensava que efeito entourage era invenção de maconheiro…).

Esse exemplo vem do Ginkgo biloba, uma tradicional planta asiática. Não vem ao caso exatamente qual é o efeito biológico em si, mas sim que quando você adiciona dois compostos diferentes, o gincolídeo A e o gincolídeo B, a inibição que se observa na reação estudada é maior do que se esperaria pela soma das massas desse compostos. Olhando no gráfico abaixo, a linha pontilhada é o esperado, em modelagem linear, e a linha fixa com os pontos vermelhos, é o que se observa na realidade. Quem quiser detalhes da explicação científica, dê uma olhada na legenda da figura. Paramos aqui para o leitor leigo, que já deve estar meio confuso.

Vamos lá para a explicação cabeçuda científica, para os interessados. Os gincolídeos (compostos presentes na planta Ginkgo biloba) inibem a agregação plaquetária com uma inibição média (IC50) em 1.8 ug/ml. Ambas as moléculas são muito parecidas, e em termos de massa, virtualmente iguais. Na coluna da esquerda, temos as proporções entre ambas. Percebam que se adicionamos 2:1 A:B ou 1:2 B:A temos resultados bastante diferentes. O gincolídeo B tem uma contribuição maior na inibição da agregação, e substancialmente superior ao que se espera pela soma das massas de cada composto. Ou seja, a contribuição de 1 parte do gincolídeo B na mistura, é superior à contribuição de 1 parte de gincolídeo B em uma solução "pura". Referência do artigo original, com demais exemplos: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19211237

No mesmo artigo mencionado acima, a Cannabis figura como uma das plantas em que esse tipo de interação parece existir. A tabela abaixo é do artigo, listando as plantas em que já se observou efeito sinérgico dos componentes de extratos.

Referência: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19211237

"…quando há sinergia, o efeito da combinação de duas moléculas é diferente do que se imaginaria pela soma de suas massas. Isso é o efeito Entourage"

Mas o que isso tem a ver com a Cannabis?

Tudo a ver. Agora, originalmente o termo "efeito entourage" foi usado para descrever uma interação positiva que ocorre na fisiologia do organismo de mamíferos, entre o endocanabinoide 2-AG e dois ésteres derivados dessa molécula. O termo não foi usado para falar necessariamente da interação entre os canabinoides da planta.

O interessante aqui é que, na verdade, os compostos que "geram" o efeito Entourage descrito (ésteres de 2-AG) não se ligam nem são ativos nos receptores canabinoides CB1. Contudo, eles podem potencializar os efeitos do endocanabinoide 2-AG neste receptor, aumentando os efeitos de sedação, analgesia, hipotermia e catalepsia típicos de canabinoides (conhecidos como efeitos da tétrade canabinoide).

Foi nesse artigo que surgiu toda essa história de "efeito entourage" no sistema endocanabinoide. Referência: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/9721036

É importante ser enfatizado: o termo entourage foi originalmente utilizado para descrever uma interação sinérgica no sistema endocanabinoide. Um efeito bem específico envolvendo moléculas endógenas. Eu mesmo participaei da caracterização de interação positiva entre moléculas canabinoides endógenas, ajudando a dar nome para esse mecanismo de interação nos receptores CB1, que hoje se conhece como modulação alostérica (se tiver curiosidade a respeito do que eu descobri, vale ler esse comentário sobre o meu artigo publicado no periódico da academia americana de ciências).

Ainda há uma discussão ferrenha se este termo pode ser estendido aos componentes da planta. Eu estou entre os que considera que sim, mas o tema é controverso. A demonstração de efeito sinérgico em si é algo complexo, e deve mostrar um efeito desproporcional na interação entre as moléculas, superior ao efeito aditivo. O autor mencionado acima, Dr. Hermann Wagner, professor emérito de uma famosa universidade da Baviera na área de produtos naturais, é criticado por ter “estendido” o conceito de efeito entourage para além do que foi descrito originalmente por Ben-Shabath. Eu, particularmente, acho que isso é uma baita briga de egos, e o termo se aplica.

Para o Prof. Wagner, os mecanismos de interação pode envolver aspectos farmacodinâmicos, incluindo alvos múltiplos, aspectos farmacocinéticos, ou mesmo puramente modulatórios. Esse jargão não facilita né?

Vamos lá, pra turma dos produtos naturais, se uma molécula altera a maneira como outra se age ou se distribui no organismo, e esse efeito é sinérgico, tá valendo. É entourage, desde que seja sinérgico, mais ou menos por aí. Os "puristas" torcem o nariz porque acham que só vale a descrição original do Ben-Shabat, que não associou qualquer mecanismo ao fenômeno observado.

Esse artigo aqui traz um pouco dessa discussão: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4604191/#!po=13.7500

Existe sinergia entre THC e CBD?

A Cannabis tem uma composição bastante complexa, contendo diferentes compostos canabinoides e não-canabinoides (como terpenóides, flavonóides, etc), mas "no resumo da ópera", costuma-se resumir seus efeitos na descrição dos dois principais compostos: o THC e o CBD. Nos últimos tempos, está na moda inclusive falar bastante do potencial médico do CBD e "rejeitar" o THC por conta de seu potencial psicotrópico. Há inclusive quem diga que o THC não pode ser considerado medicinal, o que é uma mentira. Tanto que o único medicamento registrado até hoje (Sativex, rebatizado de Mevatyl no nosso país) é uma composição 1:1 de THC e CBD, em que provavelmente o THC é o principal ativo.

As descrições anedóticas da superioridade da planta Cannabis sobre seus compostos isolados sofrem críticas por não serem embasadas em prova estritamente científica/estatística, embora a investigação da interação entre canabinoides e terpenos esteja entre os tópicos quentes dos congressos científicos. Sem dúvida, há espaços para questionamentos, e pesquisas nessa área são muito bem vindas. (Recomendo o clássico artigo "Taming THC" do Dr. Ethan Russo, para os interessados na área)

Agora, quando falamos estritamente da interação entre THC e CBD, abundam evidência de sinergia entre estes compostos. Antes de tudo, Cannabis com altos teores de CBD é muito mais tolerável, e associar o CBD reduz bastante o risco de psicose aguda induzida por THC. Além disso, o CBD pode potencializar os efeitos benéficos associados ao THC, como analgesia, anti-inflamação e prevenção de náuseas. Existem relatos de interações sinérgicas potenciais em áreas tão diversas quanto dor, inflamação, depressão, ansiedade, dependência, epilepsia, câncer e infecções por fungos e bactérias. Cá entre nós, parece até exagero, mas as referências originais estão no final do texto.

Estas são duas descrições bem interessantes de como o CBD pode potencializar os efeitos sedativos (à esquerda), enquanto bloqueia os efeitos ansiogênicos do THC (à direita), exatamente nas mesmas doses, em proporção 1:1. Interessante, não é? Retirado do artigo de Todd e Arnold no British Journal of Pharmacology (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4813392)

Sem entrar no mérito da discussão sobre quais destas interações podem de fato ser consideradas sinérgicas, vou exemplificar abaixo, o queé um efeito entourage de verdade, na minha opinião de farmacologista. Já antecipo que é difícil tanto de demonstrar, quanto de compreender.

Chamo atenção pro artigo metodologicamente primoroso do grupo da Prof. Sara Jane Ward, da Temple University publicado em 2017. As figuras abaixo descrevem um efeito anti-nociceptivo do THC e do CBD, depois da administração de uma substância usada em quimioterapia, e que provoca dor (tecnicamente, um tipo de dor conhecido como alodínia). O interessante aqui é que tanto o THC quanto o CBD provocam efeito analgésico, com curvas dose-resposta peculiares, mas ocorrendo na faixa de 1 a 20 mg/kg após tratamento por via sistêmica. Contudo, em tratamento combinado, a faixa de dose em que esses efeitos aparecem cai drasticamente para 0.3 mg/kg, ou seja 0.15 mg/kg de cada composto! É só olhar na curva individual para constatar que essa concentração não tem absolutamente nenhum efeito por si só.

Figuras editadas do artigo https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28548225

O artigo fica ainda mais bonito, e faz uma descrição muito parecida com aquela que discutimos no início desse texto: a prova matemática que a interação entre as partes é superior à soma. Se você ainda não está convencido pela explicação acima, dê uma atenção à figura abaixo. Preparado(a)? Então lá vai:

Figuras mostrando as curvas dose-resposta dos principais canabinoides. Referência: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28548225

Essas acima são as curvas dose-resposta de CBD (à esquerda) e THC (à direita) mostrando uma dose efetiva 50% (ED50) na faixa de 1–2 mg/kg para estes compostos. Tecnicamente, isso quer dizer que o CBD produz metade do seu efeito máximo (neste modelo de dor neuropática) em 1.0 mg/kg e o THC produz metade do efeito máximo em 1.8 mg/kg, por via sistêmica.

Abaixo você observa o que acontece na combinação de THC e CBD na proporção de 1:1… a curva dose-resposta (Eobs) é violentamente deslocada para a esquerda, mostrando um ganho de potência de cerca de 10 vezes! As interpretações variam, você pode dizer aqui que o CBD fica 10x mais potente, que ambos interagem, mas o que não dá pra negar é que a combinação deles é surpreendentemente eficaz em uma dose muito mais baixa.

As pessoas enxergam a beleza em coisas diferentes, não é? Pois eu enxergo beleza nessa figura acima . Como farmacologista, difícil encontrar um efeito biológico com esse grau de complexidade e resultados tão evidentes. Experimento muito elegante do time da Prof. Ward publicado nesse artigo abaixo (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28548225)

Na parte de baixo, essa curva "curtinha" (Eadd), seria a dose-resposta esperada, baseado na soma dos efeitos de THC e CBD separadamente na mesma dose utilizada. Não precisa nem ser farmacologista para ver que há uma diferença gritante entre elas. O efeito da combinação é muito maior.

Sabe o que isso significaria para um paciente de dor neuropática? No mínimo, um medicamento 10 vezes mais barato, porque a dose usada seria menor. Provavelmente também um medicamento com muito menos efeito colateral, mas diria que isso precisa ser substanciado com dados mais objetivos na clínica.

Abaixo um vídeo da Prof. Ward sobre o tema. Note que o artigo ainda não havia sido publicado na data da entrevista, então ela dá uma visão mais geral sobre o tema, mas não fala especificamente sobre os dados que discuti acima.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.