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Canabinoides e Autismo: Insights do Estudo de Adi Aran sobre o Efeito do Extrato de Cannabis em Pacientes com TEA

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O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição complexa que afeta milhões de pessoas ao redor do mundo. Caracterizado por dificuldades na comunicação social e comportamentos repetitivos, o autismo não tem cura, e os tratamentos farmacológicos disponíveis são limitados. Muitos desses tratamentos focam em controlar sintomas associados, como irritabilidade e hiperatividade, mas não abordam os déficits centrais da condição.

Em meio a essa necessidade médica não atendida, os canabinoides surgiram como uma potencial alternativa terapêutica. Mas o que a ciência diz sobre isso?

O autismo afeta 1 em cada 36 crianças de até 8 anos, segundo o centro epidemiológico americano (CDC) https://www.cdc.gov/media/releases/2023/p0323-autism.html

Um estudo recente e muito citado, liderado pelo pesquisador israelense Adi Aran, investigou o impacto do uso de extrato full spectrum de cannabis (com CBD e THC) no tratamento do autismo. Vamos explorar os detalhes dessa pesquisa e o que ela nos ensina sobre o futuro dos canabinoides no tratamento de TEA.

A lógica que sustenta o uso de canabinoides no autismo

A lógica por trás do uso de canabinoides no tratamento do autismo está centrada na função do sistema endocanabinoide (ECS), que desempenha um papel crucial na regulação de processos cerebrais, como comunicação neural, controle do humor, resposta ao estresse e neurodesenvolvimento. Estudos sugerem que esse sistema pode estar desregulado em pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o que abre caminho para o uso de canabinoides como terapias potenciais.

Pesquisas do mesmo grupo mostram que níveis de endocanabinoides circulantes, como a anandamida (AEA), são mais baixos em crianças com autismo em comparação com crianças neurotípicas, sugerindo uma disfunção do ECS que pode contribuir para os sintomas comportamentais e sociais do TEA​. Além disso, estudos pré-clínicos em modelos animais indicam que a modulação dos receptores canabinoides CB1 e CB2 melhora comportamentos associados ao autismo, como a sociabilidade e a comunicação.​

Acredita-se que o CBD, por suas propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras, pode ter um impacto positivo nos sintomas de TEA, ao reduzir a neuroinflamação e regular vias de neurotransmissão. Já o THC, espera-se que seja pró-social (em doses controladas) e que eventualmente possa atuar em sinergia com o CBD, aproveitando o famigerado “efeito entourage”, onde compostos da planta de cannabis trabalham em conjunto para aumentar os efeitos terapêuticos​.

Essa relação entre o sistema endocanabinoide e o autismo ainda está em fase de exploração, mas parece bastante promissora. Há bastate esperança em jogo.

O estudo "Cannabinoid treatment for autism: a proof-of-concept randomized trial" publicado por Aran et a. na Molecular Autism em 2021 trouxe uma abordagem bastante nova sobre o tema. Os resultados são promissores, demonstraram eficácia com um um esquema de tratamento que envolve doses relativamente altas, mas bem toleradas, dado o correto manejo clínico.

O estudo de Adi Aran: estrutura e metodologia bastante rigorosos

O estudo de Aran et al., publicado em 2021, é um dos primeiros a investigar de forma rigorosa os efeitos dos canabinoides no autismo em um ensaio clínico randomizado e controlado por placebo.

Ao todo, 150 pacientes com TEA, entre 5 e 21 anos, foram divididos em três grupos:

  • Grupo placebo: apenas veículo
  • Grupo com extrato full spectrum: extrato de planta inteira de cannabis com uma proporção de CBD para THC de 20:1.
  • Grupo com canabinoides sintéticos: CBD e THC isolados, na mesma proporção de 20:1.

O tratamento durou 12 semanas, e as doses foram ajustadas individualmente para cada paciente. A dose máxima foi de 420 mg de CBD e 21 mg de THC por dia, dividida em três administrações diárias.

Os efeitos dos tratamentos foram avaliados usando uma combinação de desfechos clínicos primários e secundários:

Os desfechos primários foram:

  • Home Situations Questionnaire-ASD (HSQ-ASD): Avaliou comportamentos disruptivos relatados pelos cuidadores.
  • Clinical Global Impression-Improvement (CGI-I): Mediu a percepção clínica de melhora no comportamento dos pacientes.

Os desfechos secundários foram:

  • Social Responsiveness Scale (SRS-2): Avaliou a gravidade dos sintomas centrais do autismo, como comunicação social e comportamento repetitivo.
  • Autism Parenting Stress Index (APSI): Avaliou o estresse dos cuidadores.

Resultados: Os Benefícios do Extrato de Planta Inteira

Os resultados do estudo foram bastante promissores, especialmente para o grupo que recebeu o extrato de planta inteira (CBD). Aproximadamente 49% dos pacientes deste grupo apresentaram uma melhora significativa nos comportamentos disruptivos, em comparação com apenas 21% no grupo placebo. Esse é um dado importante, pois sugere que o extrato full spectrum pode ser eficaz no tratamento dos sintomas comportamentais de pacientes com TEA.

Em contrapartida, os canabinoides sintéticos não demonstraram a mesma eficácia. Embora 38% dos pacientes que receberam os compostos isolados relatassem alguma melhora, os resultados não foram estatisticamente significativos quando comparados ao placebo. Isso levanta questões sobre a importância do uso de extratos de planta inteira em vez de compostos isolados, um conceito conhecido anedoticamente como “efeito entourage”.

FIgura extraída do estudo demonstrando a eficácia do extrato completo nos sintomas de comportamento disruptivo de pacientes com transtorno do espectro autista (TEA). Curiosamente, não houve diferença significativa no tratamento usando os canabinoides majoritários (THC e CBD) na mesa proporção utilizada no extrato. Ou seja, há um "algo a mais" nos extratos que não pode ser explicado pelos canabinoides mais conhecidos. Os suspeitos usuais são terpenos e canabinoides minoritários (Ref)

Quanto à segurança, os efeitos colaterais mais comuns foram sonolência e diminuição do apetite, mas nenhum evento adverso grave foi registrado. Isso indica que o tratamento foi bem tolerado pela maioria dos participantes, reforçando o perfil de segurança do uso de canabinoides, especialmente do CBD.

Mapa mental com o detalhamento de todo o estudo. Útil para estudar e deixar registrado de maneira resumida

O tal “Efeito Entourage” dos fitoterápicos

O “efeito entourage” refere-se à teoria de que os compostos da cannabis, como terpenos e canabinoides menores, trabalham em sinergia para produzir efeitos terapêuticos mais potentes do que os compostos isolados. Já tratamos deste conceito de maneira detalhada neste outro artigo.

O fato de o extrato de planta inteira ter se mostrado mais eficaz que os canabinoides sintéticos neste estudo reforça a teoria de que há um “algo a mais” nos extratos que não pode ser explicado pelos canabinoides mais conhecidos.

Porém, uma limitação importante do estudo é que ainda não sabemos exatamente quais são os compostos presentes no extrato full spectrum que estão contribuindo para esses efeitos. É possível que compostos além de CBD e THC, como outros canabinoides minoritários e terpenos, estejam desempenhando um papel crucial nos benefícios observados.

Embora os resultados deste estudo sejam promissores, ainda há muitas perguntas sem resposta. A composição exata do extrato de planta inteira precisa ser investigada para entender quais compostos são mais relevantes para o efeito terapêutico observado. Além disso, mais estudos são necessários para confirmar esses achados em populações maiores e para explorar a eficácia de diferentes combinações de canabinoides e terpenos.

Outro ponto importante é a personalização do tratamento. Pacientes com autismo têm perfis muito diferentes, e o tratamento com canabinoides pode não ser igualmente eficaz para todos. A genética da planta, o perfil de terpenos e a composição dos canabinoides podem influenciar significativamente os resultados, e esses fatores devem ser levados em consideração em futuras pesquisas.

A sensação que eu tenho é de que as pessoas enxergam extratos naturais mais ou menos assim. Há um pouco de "misticismo" em relação à questão do efeito Entourage no tratamento com canabinoides. Será magia, sinergia ou apenas um efeito aditivo da contribuição marginal de cada um dos componentes?

Considerações finais

O estudo de Adi Aran representa um avanço importante na pesquisa sobre o uso de canabinoides no autismo, especialmente no que diz respeito ao uso de extrato de planta inteira. Apesar de suas limitações, ele fornece uma das primeiras evidências clínicas do efeito sinérgico do fitocomplexo da cannabis no tratamento de comportamentos disruptivos em pacientes com TEA.Ainda estamos nos estágios iniciais de entender o potencial terapêutico dos canabinoides no autismo, mas os resultados até agora são animadores. Conforme a pesquisa avança, esperamos ver mais dados que possam solidificar o uso desses compostos como uma opção viável e segura para o tratamento de TEA.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Interessou? Siga acompanhando!

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Fabricio Pamplona
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Written by Fabricio Pamplona

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.

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