Sentir-se bem é o maior barato

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
8 min readNov 1, 2020

Estudo brasileiro pioneiro demonstra que um extrato de Cannabis rico em THC alivia a dor e melhora a qualidade de vida em pacientes com fibromialgia

A fibromialgia é um tipo de dor crônica muito incômoda, de etiologia pouco conhecida e com sintomas que não raro extrapolam o universo da "simples" dor. O paciente típico de fibromialgia é uma "senhora de meia idade", já que essa doença afeta predominantemente mulheres (cerca de 9 em cada 10 pacientes) e avança com o tempo. A epidemiologia diz que aproximadamente 3% das mulheres entre 30 e 55 anos sofrem de fibromialgia, de acordo com os dados brasileiros.

Os sintomas da fibromialgia incluem:
- Dor musculo-esquelética generalizada
- Fadiga bastante intensa
- problemas para dormir
- Transtornos de humor (frequentemente depressão)

A fibromialgia afeta predominantemente as mulheres de meia idade (Foto por Kat J / Unsplash)

A dor observada na fibromialgia é frequentemente difusa, e o diagnóstico ocorre por exclusão. É comum as pacientes relatarem mal estar e baixa qualidade de vida. Pior é que não existe um tratamento propriamente dito, e o mais indicado costumam ser os antidepressivos, que além de controlar os aspectos da dor, ainda ajudam a equilibrar os sintomas de emocionalidade.

Um estudo brasileiro publicado esse mês pode ter ajudado a mudar essa panorama de vez. Confirmando evidências anteriores obtidas em circunstâncias diferentes, o estudo brasileiro liderado pela médica Carolina Chaves ajuda a definir essa questão de uma vez por todas: Cannabis medicinal alivia os sintomas de fibromialgia, mesmo em paciente graves.

Há diversos motivos que me fazem gostar bastante deste estudo:

  1. Ele foi realizado dentro do melhor rigor possível, com as melhores práticas de pesquisa clínica, mesmo sendo realizado dentro de um centro de saúde periférico, em uma região de baixa renda.
  2. Fica evidente que o THC é o princípio ativo, tornando óbvio o valor dessa substância, mesmo para os mais céticos
  3. Os efeitos ocorrem em uma faixa de dose bastante baixa de THC, mostrando que é possível obter efeitos medicinais em doses com pouquíssimo ou mesmo nenhum efeito psicoativo
  4. Os pacientes relatam uma melhora geral da fibromialgia, que se reflete em melhora da dor e fadiga (sintomas específicos), mas também no relato de maior aptidão para o trabalho e bem-estar, que são parâmetros de funcionalidade dos indivíduos.
  5. O estudo foi feito aqui em Floripa, cidade que teve participação histórica na ciência canabinoide brasileira, e que agora volta a ter uma contribuição relevante por conta do envolvimento da UFSC neste estudo.
Diferentes formas de se obter o benefício da Cannabis medicinal por via oral. As tinturas de Cannabis já fizeram parte da farmacopeia, eram produzidas pela indústria farmacêutica e podiam ser adquiridas em farmácias convencionais. Ao centro temos uma tintura "artesanal" feita em casa, semelhante à usada nesse estudo e na direita, um produto mais moderno e tecnológico, registrado como medicamento.

O primeiro detalhe importante deste estudo foi com o grupo placebo. Esse é um ponto muito discutido em congressos específicos sobre canabinoides, particularmente pela dificuldade de se "mascarar" o efeito psicoativo da Cannabis. Neste caso, por via oral, é um pouco mais fácil, porque o extrato foi diluído em óleo, e sua aparência e sabor podem ser reproduzidas. O grupo optou por usar como controle o mesmo óleo vegetal usado como veículo (azeite de oliva) acrescido de um corante alimentar marrom para dar o aspecto "vegetal" do produto. Pra quem não conhece, os produtos artesanais de Cannabis tem uma aparência escura e às vezes um certo "de planta" e que pode deixar um sabor meio metálico na língua. Pra mim, tem a ver com a clorofila extraída no álcool. Neste caso, os autores relatam ter realizado extração com óleo, o que me surpreendeu, já que conheço os produtores.

O grupo tratado com Cannabis reduziu a severidade da fibromialgia de 75 para 30 (em uma escala de 0 a 100 do score FIQ), comparado ao grupo placebo que reduziu de 70 para apenas 61. É um efeito dramático e inquestionável dessa terapia.

Uma característica interessante deste estudo é que usaram um extrato vegetal rico em THC, mas com caracterização dos demais componentes. Segundo os autores, obtiveram um extrato com aproximadamente 25 mg/ml de THC e 0.5 mg/ml de CBD, com quantidades pequenas de canabigerol (CBG), tetrahidrocanabivarina (THCV), canabinol (CBN) e canabicromeno (CBC). A variedade usada foi a White Widow, que possui mirceno, cariofileno e pineno como terpenos principais. Esse é um extrato que eu consideraria "forte" — dada a concentração de THC — e com uma concentração tão desproporcional em relação aos demais componentes, que é difícil controlar a tentação de dizer que possivelmente o THC puro daria exatamente na mesma. De toda maneira, trata-se de um extrato vegetal, e a caracterização adequada do extrato é um ponto forte do estudo. Esse elemento é tão importante em ciência, que acredito que não teria sido publicado em uma revista internacional se não houvesse essa caracterização minuciosa.

Vamos aos dados. E já adianto: o pessoal gostou

Photo by Roxanne Desgagnés on Unsplash

A tabela abaixo destaca os principais resultados obtidos no estudo. A comparação entre os grupos antes da intervenção (no baseline) não mostrou nenhuma diferença, confirmando que os grupos de pacientes eram semelhantes antes da randomização.

Após a intervenção de 8 semanas de tratamento, temos uma melhora substancial no escore específico de fibromialgia (FIQ), que vai de 0 a 100. O grupo tratado com Cannabis reduziu de 75 para 30, comparado ao grupo placebo que reduziu de 70 para apenas 61. É um efeito dramático e inquestionável dessa terapia.

Fora o resultado no escore composto, temos também uma melhora nos componentes de "bem estar", "habilidade para o trabalho" e "dor" (marcado em amarelo), além de uma tendência de efeito para absenteísmo (marcado em azul).

Analisando de outra maneira, simplesmente comparando os estados "antes e depois" de cada grupo, temos um panorama semelhante, como pode ser observado na tabela abaixo. Uma redução do "FIQ", além de melhora no "bem estar", "dor" e "fadiga" no grupo tratado com Cannabis, além de uma surpreendente melhora no aspecto de "depressão" somente no grupo placebo.

Esse não é o primeiro estudo a relatar o efeito medicinal da Cannabis sobre a fibromialgia, mas é provavelmente o mais bem conduzido e que traz resultados mais contundentes e traduzíveis ao tratamento clínico "de verdade".

Pra quem tiver interesse, os 3 estudos abaixo são iniciativas anteriores de estudar o efeito de canabinoides na fibromialgia. O primeiro usou um análogo sintético do THC (nabilona), o segundo usou um tipo de dor "fásica" controlada para estudar a questão em laboratório e o terceiro é um estudo de Cannabis inalada, que é um uso medicianl considerado válida na Holanda. O estudo brasileiro conduzido pela Carolina é o primeiro de fato dentro da realidade terapêutica acessível aos pacientes brasileiros.

Skrabek RQ, Galimova L, Ethans K, Perry D. Nabilone for the treatment of pain in fibromyalgia. J Pain 2008;9(2):164–73.

Schley M, Legler A, Skopp G, Schmelz M, Konrad C, Rukwied Delta-9-THC based monotherapy in fibromyalgia patients on experimentally induced pain, axon reflex flare, and pain relief. Curr Med Res Opin 2006;22(7):1269–76.

van de Donk T, Niesters M, Kowal MA, et al. An experimental randomized study on the analgesic effects of pharmaceutical- grade cannabis in chronic pain patients with fibromyalgia. Pain 2019;160:860–69.

Outro ponto bem interessante do estudo é que os efeitos foram obtidos com doses muito baixas de THC. Os tratamentos iniciaram com uma gota, (equivalente a pouco mais de 1 mg de THC) e foram ajustando até que se obtivesse a dose de maneira individualizada. A dose média obseravda foi de 3.6 gotas, ou aproximadamente 4.4 mg de THC por via oral. É muito muito pouco, e absolutamente longe dos "temidos efeitos psicoativos do THC". Essa faixa de dose é super segura e dá conforto a qualquer médico — mesmo sem experiência anterior com canabinoides — a prescrever o THC (Nota: estamos observando efeitos em doses semelhantes ou até mais baixas em outras casos neurológicos quando se usam extratos vegetais, o resultado é muito interessante).

De fato, quando falamos de efeitos colaterais, não houve relato de nada "de novo" ou que possa intimidar qualquer médico neurologista. Segundo o estudo, 87,5% dos pacientes relataram sonolência, 25% relataram tontura, 25% boca seca (xerostomia), 25% melhora de humor e 12,5% melhora de libido. Em que pese a inadequação de representar o dado como porcentagem em um estudo conduzido com 17 pacientes, é digno de nota que os sintomas sejam qualitativamente comuns a praticamente qualquer medicamento neurolígico e que não tenha havido perda de paciente (desistência) por conta de efeito adverso.

Pra quem quiser conhecer o estudo mais a fundo, ele está disponível aqui.

De uma maneira geral, diria que estamos de frente com um estudo daqueles que mudam definitivamente a rota das coisas e se tornam referências absolutas no tema. Este estudo ainda vai dar muito o que falar, parabéns aos autores e que continuem motivados e produzindo nesta área incrível que é a medicina canabinoide.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

Referências para quem quiser mergulhar no assunto

Chaves C, Bittencourt PCT, Pelegrini A. Ingestion of a THC-Rich Cannabis Oil in People with Fibromyalgia: A Randomized, Double-Blind, Placebo-Controlled Clinical Trial. Pain Med. 2020 Oct 1;21(10):2212–2218. doi: 10.1093/pm/pnaa303. PMID: 33118602.

Martinez JE, Paiva ES, Rezende MC, Heymann RE, Helfenstein M Jr, Ranzolin A, Provenza JR, Ribeiro LS, Souza EJR, Feldman DP, Assis MR. EpiFibro (Brazilian Fibromyalgia Registry): data on the ACR classification and diagnostic preliminary criteria fulfillment and the follow-up evaluation. Rev Bras Reumatol Engl Ed. 2017 Mar-Apr;57(2):129–133.

Skrabek RQ, Galimova L, Ethans K, Perry D. Nabilone for the treatment of pain in fibromyalgia. J Pain 2008;9(2):164–73.

Schley M, Legler A, Skopp G, Schmelz M, Konrad C, Rukwied Delta-9-THC based monotherapy in fibromyalgia patients on experimentally induced pain, axon reflex flare, and pain relief. Curr Med Res Opin 2006;22(7):1269–76.

van de Donk T, Niesters M, Kowal MA, et al. An experimental randomized study on the analgesic effects of pharmaceutical- grade cannabis in chronic pain patients with fibromyalgia. Pain 2019;160:860–69.

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.