SxSw: Saúde vs bem-estar e outras tendências não obvias da indústria da Cannabis por Nancy Whiteman

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
8 min readMar 28, 2019

Essa foi uma palestra bastante intrigante. Um pouco pelo conteúdo, que diga-se de passagem foi ótimo, mas um outro tanto por quem apresentou. Que personagem. Essa senhora abaixo tem 60 anos, alta escolaridade, grande experiência no mundo dos negócios e é fundadora da Wana Brands, uma das primeiras marcas a iniciar a venda de edibles de Cannabis. Esses "docinhos" infundidos com canabinoides como o THC e/ou CBD são a versão legalizada do "brisadeiro" ou space cake. O conceito não é novo, mas o formato é substancialmente mais lúdico. Em 2018 a empresa declarou 16 milhões de dólares de faturamento. É balinha pra caramba… e o campeão de vendas é esse da foto, o "sour gummy", que é azedinho doce e muito colorido.

Conhece essa "tia" aí? A Nancy Whiteman criou a Wanda Brands e popularizou essa história de fazer "balinha" batizada com canabinoides. Eu particularmente acho arriscado para caramba, porque banaliza e infantiliza o uso das substâncias psicoativas, mas nos EUA tudo vira negócio, e aparentemente o povo adora. Demorou 10 anos para o negócio se consolidar no nível que está hoje. Eles foram pioneiros, mas o passo a passo de uma gestora de negócios experientes é que faz toda a diferença pra coisa deslanchar. Aliás, eles não usaram um centavo de dinheiro de investidor, foi tudo na raça, ou "bootstrap" como se diz no jargão startupeiro.

A palestra dela foi muito mais legal do que isso. Pela diversidade de produtos que a Wana Brands fornece, e com um analytics muito forte como parte estratégica do negócio, eles conseguem mapear de uma maneira bastante interessante as tendências do mercado. A visão dela é obviamente parcial, como dona de um negócio, mas ao mesmo tempo me pareceu bastante clara e legítima, além de tudo ela não tem uma pegada ativista. Nada contra, mas às vezes a visão fica meio embaçada… com o perdão do trocadilho.

Geralmente é assim que você imagina o “empreendedor” vendendo brigadeiro de maconha, não é? Esqueça, os tempos mudaram. Em alguns lugares antes do que outros, é verdade…

Produtos medicinais ou recreativos?

Essa história rende. A resposta não é nada trivial, mas ela foi perguntada assim, na lata: “Você vende algo muito semelhante aos Gummy bears, que são produtos para crianças, mas a marca também se relaciona com pacientes. Afinal, seus produtos são medicinais ou recreativos? Na visão dela, ambos. Às vezes a dose muda, mas na maioria dos casos, nem isso. Eu acho arriscado pensar assim, mas no fundo, entre adultos e num comércio legalizado, cada adulto que decida por si.

Muita gente confunde Cannabis medicinal com produtos à base de CBD. Há até profissional de saúde que discutiu comigo cheio de razão que “a Cannabis medicinal era só o CBD” ou que “o cânhamo é que cura, enquanto a Cannabis gera esquizofrenia”. É tanta confusão a respeito do tema, que não me parece que a mistura explícita entre uso recreativo e medicinal seja de qualquer benefício para o mercado.

A marcar tem um posicionamento interessante, o slogan deles diz “Enhance your life”, algo como “Melhore sua vida” numa tradução livre. A “mistura” é intencional num sentido que a melhora de qualidade de vida — que é algo tradicionalmente compreendido no âmbito medicinal — pode ser entendido como uma geração de prazer, de bem estar. E isso é mesmo um tabu. A gente está acostumado com a ideia de recuperar uma “função”, como no uso de um medicamento para aliviar sintomas, por exemplo, mas não lida bem com a ideia de usar algo para ampliar as sensações, ou mesmo ter benefícios/vantagens além da normalidade. Por isso há tanto estigma com a psicoatividade e mesmo com o “doping” (mesmo fora do contexo esportivo).

“As pessoas usam a Cannabis para se sentir bem e para ter saúde ao mesmo tempo. Eu não conheço nenhuma outra terapia como essa. É magnífico” — diz a Nancy

Eles foram corajosos, e decidiram atuar nessa interface pouco definida. Segundo o relato da Nancy “No início os clientes de produto medicinal eram pessoas jovens alegando ter dores crônicas nas costas. É uma mentira… mas com o passar do tempo as coisas vão ficando diferente, o pessoal vai saindo do armário e quem quer fazer uso medicinal tem comportamento diferente. O paciente medicinal não vai lá e pede a linhagem mais forte pra ficar locão”. Ainda segundo ela, a nova onda é a de wellness, ou bem estar. A definição entre o que te faz bem e o que cura está ficando mais tênue, e está se tornando aceitável usar algo no dia a dia, que tenha reflexos positivos na sua saúde, sem que com isso seja algo de fato curativo. É a mesma lógica de um suplemento alimentar. Fast forward e pensando especificamente para a Cannabis significa que as pessoas entram em um dispensário e vão lá perguntar pela linhagem que vai as deixar bem, relaxar, ficar sossegado, dormir melhor, se divertir, ou dar risada… depende. E tem gosto pra tudo. Não é ótimo? Segundo o analytics da Wara, há um overlap significativo entre os mercados: 71% dos clientes deles alegam uso recreativo, 56% alegam uso medicinal e 33% declaram ambos.

Agora, quer saber o que penso de usar "gummy bear" pra isso? Acho palha. Muito apelativo, e um risco enorme de ser atrativo o suficiente para trazer novatos que podem exagerar na dose, ou pior ainda, crianças. Se é pra ir nessa onda sou muito, mas muito mais o Dosist (antigo "Humboldt"), o slogan deles é "Delivering Health and Happiness", ou seja atua na mesma interface entre tratamento e bem estar, mas com uma pegada de branding muito mais responsável e equilibrada (a meu ver). A tendência de "modulação de experiências" com Cannabis veio pra ficar, não há dúvida. E aí o truque não é só os canabinoides não. A diferença entre as diferentes composições do Dosist é muito mais complexa do que isso, e envolve as características de múltiplos compostos típica de cada linhagem da planta.

Portfólio de experiências oferecido pelo Dosist. A tendência de "modulação de experiências" é muito forte e veio pra ficar. O "design de experiência" neste caso reside em encontrar a dosagem certa de cada composto na assinatura típica de uma linhagem de Cannabis. Ou, quem sabe, misturá-los na proporção correta. Isso é quente, quentíssimo. E hoje é a Cannabis, amanhã pode ser outra coisa. O céu é o limite para esse tipo de experimentação e iremos ver cada vez mais, em diferentes formas.

A forma segue a função

Essa é uma máxima conhecida do design de produto para mencionar quando algo é feito com um propósito, quando existe um motivo para aquele design. Aparentemente, as tendências de consumo de produtos de Cannabis mostram exatamente isso, que há uma grande preferência por produtos diferentes dependendo da finalidade do uso.

A principal tendência pode ser resumida em 3 tópicos:

  • Pra desestressar, as pessoas fumam/vaporizam (de dia).
  • Pra dormir melhor, as pessoas tomam uma cápsula (de noite)
  • Pra reduzir dores as pessoas passam um creme (qq momento)

Hoje em dia, em um mercado como o do Colorado, há literalmente centenas de apresentações e produtos. É bastante difícil pro paciente decidir e a maioria sequer possui informações suficientes para tomar uma decisão bem informada, mas pelos menos se tem a oportunidade de testar coisas diferentes e escolher o que funciona melhor para cada situação. Essa é a vantagem de se ter um mercado amplamente regulado. Mais detalhes no slide abaixo, da palestra dela.

Mesmo entre a categoria de “edibles”, que vai de cápsulas a formulações líquidas nanotecnológicas, passando por space cakes, há diferenças bastante grandes entre as experiências geradas. Enquanto na maioria das preparações mais caseiras como “bolos”, “manteigas” ou até mesmo “óleos” a pessoa demora mais de 1h para perceber os efeitos do produto, hoje em dia se tem a opção de tinturas de absorção pelas mucosas que atuam em poucos minutos e de adesivos em que o efeito dura mais de 3 dias. Tudo é uma questão de intenção de uso e tolerância.

A foto ficou meio bosta, mas o conteúdo é relevane. Fonte: Wana data base.

Em um ambiente como esse, há muito espaço para experimentação e uma necessidade imensa de entender a experiência do usuário. O design de novos produtos depende fundamentalmente da análise dos dados de produtos existentes e de propostas criativas de modificações que atendam as novas demandas (ou mesmo criem novas demandas, aí seria a lógica da "função precede a forma", o pressuposto contrário ao do subtítulo). Há uma vantagem enorme no uso de analytics, e impossível fugir do chavão — do big data — para se entender o que os usuários tem usado e em que situações. Por isso, sites como o Leafly e aplicativos relacionados são extremamente úteis para esse mercado. Não é à toa que o próprio Leafly foi o organizador/sponsor da vertical de Cannabusiness no SxSw. Eles sabem onde estão se metendo.

Mais do que entender, é preciso educar

Uma tendência forte também é a educação. Com tanta opção de produto e forma de uso, os usuários precisam aprender bastante sobre o tema, particularmente os mais novos. Enquanto o usuário de Cannabis old school costumava fumar um baseado, o usuário atual pode escolher entre vaporizador de óleo full spectrum, de canabinoides purificados, "terpene spiked", "live resin", "chatter", "dab", é tanta opção que precisa ler um capítulo de livro antes de entra na loja. Aí entra em cena o budtender, o especialista em Cannabis que te ajuda a escolher o melhor produto, para a experiência desejada. Alguns destes produtos mencionados acima possuem mais de 80% de THC, ou seja, são fortíssimos. Simplesmente não dá para uma pessoa inexperiente sair comprando qualquer coisa e botar pra dentro. "Vai dar ruim" na certa.

Então, vale de tudo, há panfletos, livros, cursos e-learning, conteúdo na internet, vídeos e até séries de TV que ajudam a entender esse universo, e em instância, educam o usuário. Mas nada substitui a experiência em primeira pessoa, e pelo que se sabe, o budtender veio pra ficar. O próprio dispensário é desenhado para ser um ambiente especial, bonito, interessante e onde a gente se sente seguro. Dá uma olhada na figura abaixo, onde você espera estar fazendo uma escolha melhor e mais consciente? A pergunta é retórica, obviamente todos preferem ter um ambiente devidamente regularizado.

O local de compra e a pessoa que lhe vende ainda são uma fonte importante de educação do consumidor. O exemplo da esquerda é um exemplo da péssima experiência que muita gente ainda tem no Brasil e outros países em que o tráfico rola solto e o amadorismo é enorme. No meio, o budtender de um dispensário americano, profissional especializado na orientação dos usuários e pacientes. A direita, a evolução disso tudo, o aplicativo em que iniciativa de educação, compra online e customer analytics convergem.

Há uma camada tecnológica que ainda virá por cima disso tudo: aplicativos que ao mesmo tempo educam, localizam, vendem e coletam dados de preferências e consumo. Há diversos meios possíveis para se adquirir Cannabis e produtos derivados, que sem dúvida impactam bastante na experiência final do usuário. A tendência do mercado é de diversificação de produtos e ao mesmo tempo uma customização extrema da experiência do usuário para torná-la especial e além de tudo segura.

Na palestra, uma dica importante relacionada à profissão do especialista em Cannabis. Algo que ainda está distante da nossa realidade, mas que lá fora já é lugar comum: "O budtender já foi algo especial. Hoje, na maioria dos dispensários é uma posição de entrada nas empresas. Indivíduos mal treinados tendem a perder a oportunidade de educar e se relacionar mais profundamente com o cliente e focam simplesmene em vender maconha no menor tempo possível, geralmente de 2 a 3 minutos“.

"Retailers and brands that successfully educate customers will win the game” — Nancy Whiteman

Ela é taxativa nas conclusões a respeito das tendências de mercado:

  • Rápida evolução na diversidade e ampla aceitação de novos produtos
  • Ciência e tecnologia serão os drivers do desenvolvimento de produto
  • Educar o consumidor é essencial, e ainda estamos devendo neste ponto.
  • Educação dos médicos prescritores também é importante, em mercado exclusivamente medicinais. Neste caso a prescrição é o gargalo do crescimento.
  • Nos próximos anos, haverá uma explosão de alternativas de produtos, talvez até mesmo sem a planta.
  • Veremos especificações de produtos cada vez mais complexos do ponto de vista de experiência e mais efetivos do ponto de vista terapêutico.

Sounds good?

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta. Interessou? Siga acompanhando!

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Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.