Uso terapêutico de Cannabis está finalmente regulado no Brasil. E agora, a quem isso interessa?

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
10 min readDec 4, 2019

Ontem foi um dia histórico em nosso país, "contra-tudo e todos" dentro de um panorama político mais amplo, incluindo o poder executivo e a onda de conservadorismo no país, o presidente da ANVISA Dr. William Dib, resolveu encarar a bronca e levar à votação uma proposta de norma regulatória para o uso terapêutico de canabinoides no Brasil.

Expandindo o trabalho sensível, engajado e responsável que a ANVISA vinha fazendo, a agência votou ontem, por unanimidade, a regulação do setor, dando regras claras para a produção, prescrição e comercialização de produtos à base de Cannabis, com regras ligeiramente diferentes dependendo da composição do produto.

Essa foi uma semaninha agitada, dezembro começou bem, com uma decisão favorável do INPI a uma apresentação de subsídio para impedir a patente que subjugaria indevidamente o mercado brasileiro a uma única empresa, a devida regulamentação do uso terapêutico de produtos à base de Cannabis no Brasil e, no mesmo dia, a decisão favorável e obtenção de liminar por uma empresa do setor agrícola (produção de flores) para cultivo de cânhamo em larga escala no país (link).

Modéstia à parte, as 3 iniciativas tiveram contribuições minhas em maior ou menor grau. O pedido de cultivo também teve contribuição direta (e ainda mais importante) do agrônomo Lorenzo Rolim da Silva, que escreve aqui no blog. E a regulamentação, bem, foi obviamente uma construção coletiva e uma loooooonga e árdua discussão, disputas e rodadas de estudos por conta dos técnicos da ANVISA ao longo dos últimos 4–5 anos. Deixo aqui meu reconhecimento público ao presidente atual William Dib, que enfrentou o risco político e não mediu esforços para levar a proposta à frente, mas em particular aos técnicos da ANVISA, com quem tenho me relacionado desde a viagem técnica conjunta ao Canadá em 2015, e que admiro imensamente pela seriedade e sensibilidade com que sempre conduziram. Vale mencionar pontualmente o Thiago Silvério (GPCON), Renata de Morais Souza (GPCON) e a Thais Mesquita do Couto Araujo (GPCON), que pelo menos publicamente foram os porta-voz da agência e tiveram um amplo relacionamento com o setor regulado e mergulharam a fundo no entendimento processo. Vocês registraram seu nome na história.

Da mesma forma, os médicos pioneiros Ricardo Ferreira, Eduardo Faveret Leandro Ramires, Paula dal Stella, entre tantos outros, os advogados que apoiaram a causa desde o princípio como o Emílio Figueiredo, interlocutores "na mídia" como o Tarso Araújo, que deram vozes às diversas histórias de pacientes e familiares importantes como símbolo dessa jornada, como a Katiele, Norberto e a filha Anny Fischer, a Cidinha, Fábio e a filha Clárian, a Samar com seu filho David, a Patricia e a sua filha Deborah, Angela Aboin e sua filha Maria Luiza, o Gilberto Castro, a Juliana Paolinelli, entre tantos outros. Alguns poucos, a lista obviamente não esgota os nomes dos que participaram desse processo, mas fica a menção como meu respeito e agradecimento por tudo que fizeram e passaram para que chegássemos a esse dia tão importante, e que é apenas o começo.

Como assim, apenas o começo?

Sim, agora é que começa pra valer. Até agora, tínhamos um esforço conjunto de diversas pessoas, entidades, empresas, agência, sociedade civil, para elencarmos as necessidades e priorizarmos o que seria mais importante dentro de uma regulamentação que coubesse nos moldes da lei brasileira, e estivesse em linha com a regulamentação e diretrizes internacionais. Contudo, a regulamentação foi apenas um primeiro passo, e que necessariamente será revisada daqui há 3 anos.

Então agora é que vamos saber quem vai se comprometer com a causa, quem vai tentar se aproveitar, quem serão as empresas sérias, os bons profissionais, e vai haver uma certa separação do joio do trigo. Mas muito mais importante do que isso, as pessoas vão ter acesso e vão começar a usar, experimentar e darem seu retorno (positivo ou negativo) a respeito do que funciona "na prática", e assim vamos construindo o caminho enquanto caminhamos. É meio como consertar o avião em pleno vôo… mas em qualquer caso, estamos nos preparando para a decolagem e daqui a 90 dias, tudo mudou.

Como ontem tive uma grande visibilidade como comentarista da Globo News, minha caixa de entrada recebeu uma enxurrada de emails e mensagens com perguntas pertinentes a respeito do tema. Muita gente ainda está confusa — inclusive a âncora do jornal que mandou um "tetrahidroCANABIDIOL" — e o ministro Osmar Terra que foi a público no Twitter dizer que "havia ganho a batalha", porque só o CBD poderia ser comercializado, e na farmácia. No caso, a euforia do ministro é porque não foi aprovado o cultivo de Cannabis em solo brasileiro, decisão que, como visto lá em cima, pode sofrer um revés no âmbito judicial, ou mesmo na câmara dos deputados.

Muita gente ainda está confusa e não entendeu o que está acontecendo. Esse post pretende ser uma explicação do que muda com a regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil.

O que muda com a regulamentação?

Muda que agora será possível produzir, prescrever e distribuir/comercializar produtos à base de Cannabis de maneira segura e com regras claras. Ainda vão existir exceções, como os diversos pacientes que possuem habeas corpus da justiças, e a associação ABRACE, mas via de regra, agora temos uma regra sanitária no modelo farmacêutico para essas atividades no país.

Eu não esperava nada de diferente. Na verdade, esperava muito menos, esperava que inclusive talvez nunca fosse votado esse tema. Se muito, esperava que a produção, prescrição e comércio ficassem restritos ao CBD importado. Então, como bom otimista, estou feliz por esse dia ter chegado.

Essa foi a sala da votação do tema na reunião da Diretoria Colegiada (DICOL) da ANVISA. Parecia tenso e foi longa, mas por fim a votação em si foi unânime. Participaram da reunião o presidente da ANVISA William Dib, e os diretores

Por outro lado, não foi aprovado o cultivo da planta em solo nacional, nem mesmo a importação da planta como matéria-prima. Quem sabe a Entourage vai continuar na história como a única empresa a ter importado Cannabis in natura para o Brasil? Curioso, e orgulhoso de ter sido parte disso, embora, como fui "guardião" da planta e farmacêutico responsável pela importadora, agora meu nome esteja nos autos da UNODC e eu sempre tome uma "geral" nos aeroportos internacionais em que passo.

Nessa circunstância, as empresas que quiserem produzir os produtos à base de Cannabis, terão que realizar importação de matéria-prima semi-elaborada, ou seja, em português: importar o extrato. Trabalhar com insumo importado é uma realidade de cerca de 80% da indústria farmacêutica nacional, então, nada de novo aqui, mas ter insumo nacional seria uma passo importante para reduzirmos a dependência de parceiros estrangeiros. Há quem diga que foi intencional, e resultado do lobby das empresas estrangeiras. Não sei, pode ser. Mas acredito que isso ainda possa mudar na revisão da norma, daqui há 3 anos, e deverá ter um impacto substancial no preço final do produto.

Fora o acesso ao insumo, que é o básico, a empresa que deseje produzir, deve cumprir os requisitos técnicos institucionais a seguir:

· Autorização de Funcionamento Empresa (AFE) emitida pela Anvisa com atividade de fabricar ou importar de medicamento;

· Autorização Especial (AE);

· Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) de medicamentos para a empresa fabricante do produto;

· Boas Práticas de Distribuição e Armazenamento de medicamento;

· Racional técnico e científico que justifique a formulação do produto de cannabis e a via de administração;

· Documentação técnica da qualidade do produto;

· Condições operacionais para realizar as análises do controle de qualidade em território brasileiro;

· Capacidade para receber e tratar as notificações de efeitos adversos e queixas técnicas sobre o produto; e

· Conhecimento da concentração dos principais canabinoides presentes na formulação, dentre eles o CBD e o THC, além de ser capaz de justificar o desenvolvimento do produto de cannabis.

No mercado farmacêutico, isso é o mínimo do mínimo.

Uma ressalva, no entanto, farmácias de manipulação estão vedadas de produzir esse tipo de produto, assim como não se permite o uso medicinal em animais. A comercialização será exclusiva em farmácias e drogarias sem manipulação, e mediante prescrição médica.

(tem mais uma série de detalhes, que os interessados podem se remeter ao post do sechat, que transcreveu ipsis literis o documento de release que foi divulgado pela ANVISA, não vale ficar reproduzindo aqui o que já falaram)

Mas, sim, já sei o que você está pensando, e está certo. Esse modelo favorece grandes empresas, que possuem condição para terem estas infra-estruturas, conseguir estas licenças e autorizações, além de ser competitiva com produção em escala e canais de distribuição. Apesar de ter sido criada uma regulamentação, continua muito difícil abrir uma empresa para trabalhar com esse tema no Brasil. Modelos de importadora de medicamentos, como a FarmaUSA ou mesmo Entourage, podem se destacar. É muito mais viável abordar aspectos “suplementares”, como alguns serviços, vide INDEOV, Dr. Cannabis, ou focar produtos auxiliares. Basicamente o tipo de empresa em que a The GreenHub aposta. Certamente também há espaço para laboratórios analíticos e empresas de consultoria focadas no tema. Quer empreender nesse meio? Me escreve que eu te ajudo a delinear as ideias. Adoro ajudar como mentor, e estar envolvido em iniciativas interessantes e com potencial.

A grande sacada — Cannabis não é medicamento

O que "mudou tudo" a meu ver, foi uma decisão criativa e arrojada da agência que criou uma classe de produtos exclusiva para os derivados de Cannabis. Portanto, os "produtos à base de Cannabis" não se tratam de medicamentos. Nem de suplementos, como tive que delicadamente corrigir a apresentadora ontem no programa da GloboNews. Trata-se de uma classe própria de produtos particular, que exige qualidade farmacêutica, mas não terá indicação terapêutica, permitindo que o registro seja facilitado, muito mais barato e os usos sejam decididos na relação médico-paciente, baseado nas evidências disponíveis para aquela determinada composição, como expliquei nesse vídeo ao comentar o tema ao vivo para a GloboNews. É muito próximo das decisões regulatórias que tomaram países como Canadá e Portugal, por exemplo, que receberam visitas técnicas e colaboraram ativamente com a ANVISA nesse processo de regulamentação.

Eu comentando o tema ao vivo no Jornal das 18h da GloboNews ontem. Foi uma honra incrível, já que o canal costuma chamar como comentarista os melhores especialistas de cada área no país. Me sinto bastante reconhecido como profissional, e além de tudo, fico feliz de poder esclarecer o tema em rede nacional. Conteúdo do vídeo apresentado aqui aquihttp://g1.globo.com/globo-news/videos/v/anvisa-libera-venda-de-produtos-a-base-de-cannabis-mas-cultivo-segue-proibido/8136967/

Portanto, a indicação e forma de uso dos produtos dos produtos à base de Cannabis são de responsabilidade do médico, em harmonia com a decisão do paciente. Ele ou seu representante legal devem assinar Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) — uma espécie de termo de responsabilidade — que detalha dados específicos do produto de cannabis.

As regras para a prescrição do produto variam de acordo com a concentração de Tetrahidrocanabinol (THC), então temos na verdade 2 tipos de "produtos à base de Cannabis": o "psicoativo" e o "não psicoativo" (como está mencionado por exemplo, na regulamentação colombiana). Isso está de acordo com as melhores práticas na regulamentação internacional.

Dizer que Cannabis não é medicamento não é depreciativo, e não é o mesmo de dizer que não tem validade científica ou que não seja medicinal. Pelo contrário, foi um "atalho regulatório" para facilitar o acesso aos produtos

  1. Prescrição do produto não psicoativo, vulgo "CBD": nas formulações com concentração de THC menor que 0,2%, o produto deverá ser prescrito por meio de receituário tipo B, com numeração fornecida pela vigilância sanitária local e renovação de receita em até sessenta (60) dias. Só se menciona os níveis de THC, dada a necessidade de maior controle em relação ao esse produto, que isoladamente continua proscrito, salvo as exceções como essa. Na prática, estes produtos serão os de canabidiol, e poderão ser prescritos a qualquer paciente que o médico queira. Utilizações conhecidas que serão utilizadas com indicações clínicas: epilepsia, dores inflamatórias, ansiedade e eventualmente, redução de crises de ansiedade/psicose aguda. Também há indícios de que possa ser útil no tratamento da dependência de drogas.
  2. Prescrição do produto psicoativo, contendo THC: os produtos com concentrações de THC superiores a 0,2% só poderão ser prescritos a pacientes terminais ou que tenham esgotado as alternativas terapêuticas de tratamento. Neste caso, o receituário para prescrição será do tipo A, fornecido pela vigilância sanitária local, padrão semelhante ao da morfina, por exemplo. Na prática, serão produtos com indicação clínica para pacientes que tentaram outros medicamentos sem sucesso, os chamados "pacientes refratários". As utilizações clínicas mais conhecidas são analgésico para dores crônicas neuropáticas, estimulante do apetite em pacientes HIV positivos (ou outras doenças debilitantes), adjuvante aos tratamentos oncológicos e no tratamento de doenças neurodegenerativas, como a esclerose múltipla.
Essa frase explica um pouco a minha sensação neste momento. Avançamos, e agora a história é outra.

Os produtos certamente terão composições variáveis entre estes dois canabinoides, e muitos outros que compõem a planta, incluindo outras classe de compostos naturais como terpenos e flavonoides. Então, há um espaço enorme para "educação médica" e de outros profissionais de saúde no tema, visto que não há muita gente que realmente entendo do assunto e tem ampla experiência no Brasil (por motivos óbvios, até a pouco tempo era um tabu, proibido e não se ensinava na faculdade).

Ainda tem muito para discutirmos, e ao longo do tempo vamos tratando aqui dos assunto mais pertinentes. Mas em primeiro momento, essa é minha visão sobre o tema. Podia ser melhor? Podia, certamente, ao incluir também a produção local de insumos. Contudo, poderia ser bem pior. Avançamos e certamente já estamos numa posição muito melhor do que antes. Como diria o grande Chico Science "um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar".

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.