A cegueira seletiva

Nayara Garófalo
TW: Preta!
Published in
5 min readJul 13, 2016

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Já faz alguns anos que eu, empolgada, muito animada e apreensiva, cheguei a um antigo trabalho (uma agência de publicidade) com um look novo. Havia feito meu big chop (procedimento em que uma pessoa crespa ou cacheada em transição se livra do cabelo com química, cortando-o). Não só cortei o cabelo — que, antes, batia no meio das costas e agora estava na altura do queixo — como pintei, pela primeira vez. E de loiro. O cabelo estava curto, loiro e todo cheio de cachinhos que eu ainda não sabia como lidar. E estava lindo.

Creio que não precisa de muita empatia pra se entender como um momento desses gera apreensão, desejo de aprovação e ansiedade. A reação das pessoas do trabalho que convivem com você todos os dias, às vezes por mais tempo do que sua própria família e amigos, tem relevância neste momento, por mais que você esteja certa de si mesma e diga por fora que não.

A recepção foi maravilhosa. Todos elogiavam, exceto um homem ou outro que afirmava: “preferia longo. Homens gostam de cabelo longo”. Naquela época, eu já sabia o bastante do sistema em que vivemos para não me importar com essa imposição machista sobre minha imagem. Então, num primeiro momento, o da chegada ao trabalho, tudo estava positivo.

Mais tarde, quase no horário do almoço, tive que sair da minha sala para ir numa outra maior, com mais funcionários. As reações foram ruidosas. Mas uma especificamente nunca mais me esqueci.

A manda-chuva à época estava na sala. E, ao me ver, soltou empolgada: “OLHA! Tá se preparando pra ser a próxima Mulata Globeleza?”

Baldes de água fria.

Lembrei-me em milésimos de segundos que, dois dias antes, uma outra funcionária branca havia cortado o cabelo bem curto. Foi muito elogiada pelo corte moderno. Somente. Lembrei-me que outra, branca, dias antes, havia cortado franja e foi muito elogiada pelo corte jovial. Lembrei-me que outra, também branca, havia feito luzes e muitos foram os comentários sobre como a intervenção capilar iluminou sua expressão.

E eu só podia querer ser a Mulata Globeleza.

Meu sorriso deve ter se apagado e meu curto silêncio deve ter gritado porque todos ficaram calados, em segundos de tensão. Eu já era a problematizadora, a que incomoda, aquela que “tudo-é-preconceito-agora”, a “politicamente-correta”. Eu notava nos olhares que o desconforto não era pela frase extremamente grosseira, racista e objetificante. O desconforto era pelo “desconforto” que temiam que eu causasse.

Tudo que pensei na hora foi ruim perto de tudo que eu pensei que deveria ter respondido quando pensei sobre isso depois. Balbuciei um “menor pretensão, mesmo porque meu currículo é maior do que minha bunda”. Mas depois problematizei minha resposta pra mim mesma. Questionei meu posicionamento, a diminuição que eu infligi automaticamente para outras mulheres que seguem este caminho. Me senti mal por ter respondido diminuindo minhas irmãs. Me senti mal porque fui ofendida e não tinha a resposta ideal na ponta da língua.

Sabe quem mais se sentiu mal nesse dia? Ninguém.

A manda-chuva sorriu sem graça, respondeu o bom e velho “eu só estava brincando”. Respondi o meu bom e velho “então, eu também”. Voltou a falar com os funcionários sobre trabalho. Os funcionários respiraram fundo aliviados. Devem ter ficado felizes pela ausência de “barraco” que adiaria o almoço. Em alguns minutos, o assunto foi esquecido. Não foi comentado nem no restaurante.

Sabe quem nunca esqueceu? Eu.

Eu nunca esqueci como foi viver, mais uma vez, publicamente, o racismo institucional que te coloca sempre nos mesmos lugares pré-determinados ao negro pela sociedade, mesmo que você seja uma boa profissional dedicada com diplomas pra decorar parede. Eu nunca esqueci como é se culpar por algo que te fizeram. Eu nunca deixei de problematizar minha resposta, de me arrepender por ela. Nunca consegui deixar de me cobrar por ter sido ingênua e não ter planejado uma resposta prévia. Como é que eu não imaginei que alguém ia fazer este comentário antes? Como fui ingênua assim de não presumir que uma preta de cabelo loiro não receberia só elogios? Nunca consegui deixar de me cobrar por ter deixado passar quase que “em branco”, literalmente. Nunca consegui esquecer os olhares cúmplices dos colegas de trabalho, apenas rezando para que o assunto não se estendesse. O olhar ofendido da manda-chuva, que me condenava pela minha “falta de senso de humor”, por não “entender elogios”. Também nunca consegui deixar de ficar irritada comigo mesma por não ter superado isso, por não ter sido forte o suficiente, por não ter conseguido não me importar. Eu, eu. Cobranças. E mais cobranças.

Porque, no final das contas, o racismo só atinge a nós, minorias políticas. E, no final das contas, só nós o enxergamos, exatamente por isso. E como só nós o enxergamos, só nós pensamos sobre ele. E como só nós enxergamos, para os não-negros, toda reação nossa é exagerada, é desnecessária, é sem sentido.

Até para os não-negros em desconstrução, o racismo só é visível quando ele é apontado por nós. E aí, vem as mesmas frases de sempre: “não tinha visto o problema antes, mas agora que vi, sinto muito que você tenha passado por isso…”. Ninguém vê antes. Tem gente que não vê nem mesmo depois que a gente mostra, aponta, explica, desenha. Tem gente que não vai ver ainda agora, nesse texto.

Pra todos os outros naquela agência, esse dia foi só um dia qualquer, que ninguém mais se lembra. Ninguém viu nada de errado.

E eu tinha chegado tão animada…

Eu, na época, com o novo corte e a nova cor de cabelo.

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