“Denunciando nas horas vagas” ou “Nossa, não me diga!?”

Nayara Garófalo
TW: Preta!
Published in
6 min readMar 28, 2017

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Ontem, dia 27/03/17, passou a circular nas minhas redes sociais uma matéria veiculada em alguns sites. Theo Van Der Loo, presidente da Bayer S.A., denunciou um caso de racismo ocorrido com um conhecido dele na rede social Linkedin.

Print do Portal Geledés

Seria cômico se não fosse trágico ver o quadro do Conselho Administrativo da Bayer S.A., empresa que Theo Van Der Loo preside e, nas horas vagas, denuncia racismo. Mas esse não é exatamente o caminho que eu pretendo tomar.

Print do Conselho Administrativo do Site da Bayer S.A. Brasil, repleto de diversidade racial.

Seria cômico se não fosse trágico notar que, com tantas vertentes dentro da mesma empresa internacional, Theo Van Der Loo, que preside e, nas horas vagas, denuncia racismo, não termina seu texto informando que contratou o “conhecido afrodescendente”, mesmo ele tendo “excelente formação e currículo”. Mas esse também não é ainda o caminho exato que eu pretendo tomar.

A fantástica e solidária postagem do Presidente da Bayer, que denuncia racismo nas horas vagas.

Poderia também rir por alguns minutos, se não fosse de chorar, sobre a “surpresa” de Theo Van Der Loo com seu “amigo” por ter optado não denunciar a empresa que o discriminou. Perceba: uma pessoa conhece o presidente da Bayer a ponto de fazer confidências deste grau de intimidade. Essa pessoa ainda precisa entregar “excelentes” currículos por aí, sofre humilhações e ao contar para o amigo, não recebe um apoio do tipo “meus advogados estão a seu dispor” ou “vamos denunciar essa situação e eu lhe garanto um emprego”. Mas o cara que preside a Bayer e, nas horas vagas, denuncia racismo, consegue ainda se surpreender com a obviedade dessa situação. Mas esse ainda não é o caminho deste texto.

Engraçado demais, se não fosse triste, pensar que somente quando Theo Van Der Loo, um homem branco em alto cargo hierárquico, fala sobre o racismo óbvio existente no mercado de trabalho, o tema ganha destaque. E a grande maioria das matérias e dos comentários a respeito (eu pesquisei) são sobre o quanto ele está de parabéns ao denunciar — quando não está presidindo — o racismo.

Textos e mais textos reconhecem a importância de um homem branco, na posição de um presidente de uma multinacional, denunciar uma situação a um outro sem-número de homens brancos, igualmente presidentes e diretores de outras grandes empresas (afinal, o presidente da Bayer não deve ter o Seu Jão do Mercado entre seus amigos no Linkedin), que curtem 1537 vezes e fazem 534 comentários sobre o óbvio. Isso tudo daria uma comédia, se não fosse apenas uma tragédia:

O “conhecido afrodescendente” com excelente currículo permaneceu desempregado até onde acompanhei a narrativa ou, pelo menos, o desfecho da situação para o protagonista da história não pareceu ser relevante para ser noticiado.

Eu me dei ao trabalho de ler todos os comentários. E sim, quem habita a internet sabe que ler os comentários é a pior coisa que alguém pode fazer, mas eu li. Todos. Entre vários elogios, delegações do problema a Deus, culpabilização do afrodescendente (que passou a ser o responsável por situações como estas continuarem a acontecer pela ausência da denúncia) e até uma discussão enojante sobre cotas, ninguém pede o contato do “conhecido afrodescendente” para uma entrevista.

Na realidade, o “conhecido afrodescendente” virou apenas um cenário de uma história que acontece conosco todos os dias, mas que nem sendo as vítimas, ganhamos protagonismo.

O meu ponto, mesmo, é simples: denunciar o racismo nas horas vagas é fácil. Mudanças eu veria, talvez, se as pessoas passassem a denunciar o racismo no seu horário de trabalho, quando, durante o horário comercial de sua função de chefia, escolhessem mudar o curso da história tomando atitudes reais para parar o racismo “nosso” de todo dia começando pelo seu próprio quintal. E eu não estou sendo ingênua ao pensar que podemos acabar com o racismo individualmente. Estamos falando de um SENHOR QUINTAL: uma das maiores empresas multinacionais do planeta.

Foi impossível para o presidente e todos os seus amigos do Linkedin fazer um cálculo simples para a equação: um negro com bom currículo tem dificuldades de ser contratado. Eu estou em posição de indicá-lo para uma vaga. Eu posso resolver o problema dele e, aí, com a segurança de um emprego, ele poderia fazer o que nós achamos que ele deve fazer: denunciar. Mas essa matemática parece ser muito complexa.

Certamente, é necessário que pessoas não negras se manifestem e se posicionem contra o racismo e as opressões que as minorias vivem, uma vez que este problema foi inventado exatamente por elas, e não por nós, mas vamos cortar a palhaçada, porque ninguém tem tempo pra isso: se posicionar envolve muito mais do que postar um texto contando o óbvio.

Enquanto nós aguentamos piadocas sobre nossos cabelos no trabalho, ouvimos os mais variados comentários racistas em silêncio porque temos conta pra pagar, mulheres negras sofrem assédio e milhares de pessoas negras, neste exato momento, dividem um ovo para uma família de cinco pessoas por estarem desempregadas há meses, eu não consigo exprimir nada além de um debochado “Nossa. Não me diga?! É mesmo?” para cada denúncia rasa de racismo de horas vagas que eu venha a ler por aí.

É curioso ver a branquitude teoricamente crítica. Ela está lá, ciente dos problemas, sempre lamentando o terrível e desonesto mundo em que vivemos. Ela reconhece seus privilégios, sem nem perceber quais são exatamente os privilégios que tem (você pode ser o presidente de uma multinacional, por exemplo). Nós, enquanto isso, estamos aqui correndo atrás da sobrevivência. Se lamentamos, é vitimismo. Não dá para parar porque o barato é louco do lado de cá e um minuto chorando é tempo mais do que suficiente para passarem por cima de nós dez vezes. Então, assistimos, no meio do nosso corre, os brancos contando como somos submetidos a condições absurdas nessa corrida, enquanto degustam um vinho ou bebericam um Starbucks que nós servimos.

Mas até aí, tudo bem. Lutar faz parte da minha ancestralidade e vamos seguindo sobrevivendo, do jeito que dá, criando novas estratégias para vencer, uma vez que as regras do jogo mudam toda vez que chegamos perto da vitória. A gente dá nosso jeito, segura nossas pontas. A gente adoece, mental e fisicamente, denuncia quando dá, vê o agressor saindo tranquilo por mil reais, se abraça, se fortalece. Engole quando não dá, mesmo não digerindo. Não é morto quando dá, trabalha quando dá, come quando dá, estuda quando dá. Recebe um salário quando dá, trabalho escravo quando não dá, não é preso quando dá. Coloca um sorriso no rosto, mesmo sem dar, e enfrenta o mundo diariamente como se ontem não tivesse sido horrível o bastante. Isso aí a gente faz.

A minha pergunta hoje à nossa sociedade é bem simples: quando é que você — você mesmo que está me lendo — vai parar de lamentar minha vida e tomar uma atitude efetiva, dentro dos seus inúmeros meios e privilégios, para resolver o problema?

É só isso mesmo que eu queria saber.

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