“O curioso caso de Paulo Gustavo” ou “A incrível capacidade do povo negro de desculpar”

Nayara Garófalo
TW: Preta!
Published in
7 min readJul 6, 2016
Paulo Gustavo e Ivonete

Em junho, não há muito tempo, o ator Paulo Gustavo esteve envolvido em uma polêmica. Ao postar imagens de sua personagem Ivonete, no dia 12 de junho, foi justamente acusado de blackface e racismo em seu perfil profissional de facebook.

A trajetória que Paulo Gustavo fez diante dessa acusação foi a mesma que a branquitude sempre faz diante de acusações de racismo. Para quem já vivenciou essa situação de denúncia antes, não viu nenhuma novidade.

1ª Etapa: Diminuir a questão.

Em um primeiro momento, não há manifestações oficiais sobre o tema. Com o crescimento do número de comentários e as primeiras notas na mídia sobre o ocorrido, o ator percebeu a necessidade de se manifestar. Recorreu, portanto, a boa e velha 2ª etapa.

2ª etapa: A opinião de um amigo “entendido”.

A opinião de um amigo “entendido”

Usar o discurso de um terceiro, que te defende, parece ser sempre uma opção válida. No caso, Paulo Gustavo optou por esta postagem cheia de falácias de Pedro Antonio Paes, diretor, ator, branco e desconhecedor das questões que estavam sendo reclamadas. Para Pedro Antonio, o blackface é, hoje, “um instrumento de combate ao racismo”, embora essa afirmação seja feita sem nenhum embasamento. Chega a afirmar que “Ivonete dá voz aos que muitas vezes são marginalizados”, ainda que seja óbvio o contrassenso de que dar voz aos que são marginalizados é, basicamente, colocar os marginalizados na frente das câmeras, o que não deve ser difícil para um diretor. Pedro afirma também que “não há NADA no discurso da personagem que a coloque como inferior”. Esta falácia será retomada mais à frente.

Por sua vez, Paulo Gustavo produz um texto para acompanhar o print, diminuindo a questão do racismo e praticando uma série recorde de falsas simetrias que merecia uma indicação ao Guiness. No seu texto, ele comparou racismo com homofobia, playboy machista, mulher feia, nerd, vagaba, mãe de família, Senhora dos absurdos e anjo.

Poderíamos falar sobre a misoginia contida nos personagens de Paulo Gustavo, mas isso geraria vários parágrafos a mais, então deixo apenas registrada essa informação para reflexão. O ponto é que Paulo Gustavo não deveria interpretar “vagabas” e “mulheres feias”, seja lá o que ele entende por essa categoria. Mas o fato de interpretá-las não blinda, de forma alguma, o fato de ele fazer blackface. Na verdade, piora, no meu ponto de vista. Enfim, uma vez utilizado o “discurso do amigo entendido”, Paulo Gustavo está pronto pra 3ª etapa.

3ª etapa: Reforço ou “Eu estou certo sim”

“Eu estou certo sim”

Paulo Gustavo, no mesmo dia, posta outra imagem de Ivonete, agradecendo ao apoio do amigo “entendido” e resumindo os grandes textos feitos por vários negros com disposição de explicar ao ator qual era o problema em ataques pessoais que precisam ser defendidos. Paulo Gustavo se coloca, no final das contas, em posição de vítima. É ele que está sendo atacado. É ele que foi ofendido. Ele é o incompreendido. E os negros, meros preconceituosos raivosos cheios de ódio (“nesse mesmo dia em que deveríamos estar todos de luto repensando nosso ódio, nossos preconceitos e nossos limites de compreensão, tem gente que veio me atacar por representar uma mulher negra”).

4ª Etapa: Mais ou menos desculpas.

Mais ou menos desculpas

Alguns dias se passam desde a 3ª etapa. Quando a coisa não melhora mesmo postando sobre outros assuntos e Paulo Gustavo se vê em meio a uma crise de valores, ele recorre ao “Manual do Social Media em Tempos de Crise” e, finalmente, redige um “pedido de desculpas”, seis dias depois.

Entre muitas aspas. Vamos ao texto postado.

Paulo Gustavo with Prithwi Singh.
June 18 at 3:41pm ·
Nesses últimos dias li, ouvi, pensei e entendi que há uma longa discussão sobre o uso de “blackface” muito anterior e muito maior do que eu, minha carreira, minha personagem e o 220 volts, por isso decidi refazer a Ivonete sem que ela pareça uma caricatura risível da mulher negra. Ela não é. Ivonete é esperta, crítica, consciente e questionadora. É uma brasileira que passa por todas as dificuldades absurdas que todos passamos como a falta transporte eficiente, sistema de saúde precário, violência, etc etc etc… Ela se revolta, reclama, exige, sofre, mas não perde o rebolado, mantém-se de cabeça erguida, forte, guerreira e sobretudo alegre. Mas o blackface historicamente remete a experiências que são dolorosas para muitas pessoas e, mesmo não sendo a intenção, eu peço desculpas se ofendi ou magoei alguém. Eu posso pintar minha pele, posso fingir, representar, tentar dar voz a essa mulher, mas eu nunca saberei de verdade como é ser uma mulher negra. Nos textos, a alegria da personagem não fazia dela uma alienada, mesmo assim eu compreendi que a negra animada é um estereótipo que os movimentos negros combatem com razão pois na vida real, muitas vezes, não é nada engraçado. Apesar de conhecer e adorar muitas Ivonetes, ser negro no Brasil é difícil sim. Como ser mulher também é difícil; como ser gay também é difícil. Tanto na minha arte quanto na minha vida pessoal tenho feito o que posso pra tentar transformar o mundo num lugar melhor. Casei com o Thales, assumi isso publicamente, mudei minha certidão. Entendo que temos um grande processo de conscientização sobre o racismo, o machismo e a homofobia no Brasil e ele vem passando por etapas dolorosas. Eu não quero de forma alguma ser agente dessa dor, corroborar com preconceitos e manter o status quo de uma sociedade que necessita melhorar. Todos nós precisamos conversar e pensar mais a respeito. Eu tenho feito isso. Eu e a Ivonete. ❤️

Na sua nota, Paulo Gustavo reconhece ter finalmente entendido o que é blackface. Isso é ótimo. Parece até que ele entendeu mais ou menos o que as mulheres negras sofrem, afirmando que sofre também, etc, etc (“é uma brasileira que passa por todas as dificuldades absurdas que todos passamos como a falta transporte eficiente, sistema de saúde precário, violência, etc etc etc…”), ainda que Paulo Gustavo não viva, exatamente, esta realidade.

Mas o impressionante é que, diante disso, a decisão que ele achou mais acertada foi: continuar fazendo. Mas agora, com uma maquiagem bonita. E pra terminar seu pedido de desculpas que nunca chegou a ser um (“mesmo não sendo a intenção, peço desculpas SE ofendi alguém”), ele prossegue com sua série de falsa simetria, ao se colocar como um ser autorizado a fazer blackface por ser gay assumido, chegando a afirmar, inclusive, que seu casamento foi um ato “para transformar o mundo num lugar melhor”. Afirma, por fim, que por não querer corroborar com preconceitos, ele vai continuar. Fazendo. Blackface.

O surpreendente desta história toda não é a trajetória de Paulo Gustavo em 4 atos tão conhecidos por qualquer militante negro. O surpreendente é que, magicamente, ele foi perdoado. Paulo Gustavo foi acusado de blackface, pediu mais ou menos desculpas fazendo blackface e ele foi perdoado. Foi, inclusive, exaltado, nas redes sociais por ter reconhecido seus erros e se desconstruído. Fazendo blackface. Do qual ele foi acusado.

Pois bem, o ponto é que a pele pintada de Ivonete sempre foi o menor dos problemas de Ivonete. A personagem é um estereótipo cruel e racista de uma mulher negra burra, bêbada, alienada, dependente, vulgarizada, sexualizada, favelada, péssima mãe e promíscua.

Pedro Antonio Paes afirmou que não há “NADA”, em caixa alta, que coloque Ivonete como inferior. Foi até difícil separar um vídeo que mostrasse que isso não poderia estar mais errado, mas escolhi esses três aleatoriamente. Qualquer vídeo publicado no Youtube com a personagem apresenta Ivonete com as mesmas características.

Hipersexualização de mulheres negras e homens negros
Descrição do vídeo “Gringos”, onde Ivonete é chamada de mulata.
A personagem se mostra ignorante e promíscua.
Neste, há um trecho que inclusive afirma que após ter queimaduras graves de sol, a pele vai descascar e a cor boa é a que vai estar por baixo da pele da personagem.

Mas, Nayara, nós não vimos ainda como será a Ivonete que ele reformulou.

Não, não vimos. E será mesmo que precisamos ver? Um ator que acha que é brincadeira chamar uma atriz negra gorda de King Kong (em público, em vídeo e em particular) e pensa que isso é comparável ao fato de ela chamá-lo de “creme de leite” vai mesmo fazer uma Ivonete respeitosa? É possível fazer uma Ivonete respeitosa partindo do princípio que a Ivonete é, ainda agora, um personagem de blackface com uma maquiagem mais bonita?

http://odia.ig.com.br/diversao/2015-03-18/paulo-gustavo-usa-celular-para-escrever-novo-filme.html

Diante de todo este contexto, apenas ecoa a pergunta que, infelizmente, não detenho respostas:

O que nos leva a desculpar e exaltar homens brancos que repetidas vezes zombam de nós por um simples pedido de mais ou menos desculpas que saiu quase como um parto?

O que nos leva a deixar pra lá um dia inteiro de repetidas diminuições e apagamentos do nosso discurso a partir do momento que, seis dias depois, um ator branco posta um pedido de mais ou menos desculpas como quem preenche um formulário no hospital, por mera obrigação? O que nos leva a exaltar (e inclusive discutir entre nós mesmos) uma pessoa branca que ri da nossa cara, ao nos chamar de King Kong, ao dizer que isso é brincadeirinha, ao nos representar como bêbadas promíscuas e burras, ao sexualizar os homens negros de maneira constante e sistemática simplesmente porque ele afirma que ele vai continuar a fazer isso, mas agora com nossa carinhosa autorização?

Mas ele pediu mais ou menos desculpas, SE alguém foi mais ou menos ofendido. E nós somos realmente e incrivelmente muito bons em desculpar.

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