“Quem é Beyoncé na fila do pão” ou “Como MC Carol fez mais em uma música pelo povo negro do que todas as músicas lançadas nos últimos meses”

Nayara Garófalo
TW: Preta!
Published in
7 min readJul 15, 2016

--

MC Carol lançou uma música hoje que eclipsou, no Brasil, grandes lançamentos internacionais, como Britney Spears e Katy Perry. Autora de várias músicas com letras de protesto, Mc Carol já discutiu o feminismo negro, passando por referências negras como Dandara, ao genocídio indígena em suas músicas.

Na letra da música Delação Premiada, ela fala de temas importantíssimos. Muitas pessoas compararam MC Carol como Beyoncé do Brasil e chamaram sua música de Formation brasileiro. Um comentário no vídeo oficial chega a afirmar que “cada país tem o Formation que merece”, seguido de várias curtidas.

Adoro Beyoncé. Gosto de Formation e entendo o significado desta música dentro do contexto pop americano. Dito isto, só me resta afirmar: QUEM É BEYONCÉ NA FILA DO PÃO.

A música contundente e afiada de MC Carol, em seus poucos minutos, fala sobre Genocídio Negro, Desmilitarização da Polícia, critica as UPPs, fala da manipulação da mídia, do racismo estrutural, dos privilégios brancos, da parcialidade da Justiça, do abandono do Estado à periferia e faz por nós, povo negro, muito mais do que qualquer música lançada nos últimos meses.

Primeiro, vamos à música:

E, agora, eu explico minha afirmação anterior, detalhe por detalhe, porque sou dessas.

- Mataram uma criança indo pra escola.

É muito difícil delimitar qual caso específico seria este citado por MC Carol. Uma pesquisa no google nos dá 226.000 resultados sobre a pesquisa “Criança baleada a caminho da escola”.

226.000 resultados.

Em Feira de Santana, em São Paulo, em Manaus, no Rio de Janeiro, em Goiás, Caldas Novas, Rosário, Conceição do Jacuípe… Crianças negras são baleadas diariamente e não ganham os jornais como uma branca Isabella Nardoni, por exemplo. Uma pesquisa do Ministério da Saúde realizada entre 2001 e 2012 em todos os registros do estado, aponta que agentes de segurança do Rio mataram 50 crianças de 0 a 14 anos. Em São Paulo, no mesmo período, foram 13 casos. É necessário pensar que estes são os casos de crianças que foram oficialmente mortas por agentes de segurança. Não é preciso muito conhecimento para saber que os casos que o Estado admite a culpa de seus agentes são uma minoria e que esse número é, certamente, imensamente maior.

No meu entendimento, não conseguir localizar qual caso específico MC Carol se referia é mais doloroso e relevante do que descrever um caso apenas. Isso só revela que crianças negras são exterminadas como insetos nas periferias do Brasil.

- Cadê o Amarildo? Ninguém vai esquecer.

Elizabeth Gomes da Silva, viúva de Amarildo.

Amarildo Dias de Souza foi levado de um bar por policiais militares para ser interrogado na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) durante a “Operação Paz Armada” (ah, as ironias), na madrugada entre 13 e 14 de julho de 2013, o que, por si só, já é ilegal, uma vez que ele não havia cometido crime algum para ser deslocado a uma unidade de polícia.

Amarildo nunca mais foi visto desde então. A Polícia realizou seu padrão de desculpas, tentando jogar de maneiras absurdas a culpa sobre Amarildo. A imprensa ajudou, colocando sobre Amarildo crimes e comportamentos que ele nunca apresentou. O que ocorreu, na verdade, é que Amarildo foi submetido a tortura até a morte pelos policiais da UPP, que ocultaram seu cadáver. Dos 25 policiais militares denunciados, 12 foram absolvidos e 1 faleceu antes do julgamento, embora já tenham recorrido dessa decisão. 13 respondem ao processo em liberdade.

A viúva de Amarildo, Elizabeth Gomes da Silva, passou por momentos muito ruins nos últimos anos, na sua luta por justiça e pela recuperação do corpo, enfrentando, ainda hoje, uma grave depressão. A Justiça condenou o Estado a pagar R$ 3,8 milhões de reais à família de Amarildo (sua esposa e seus seis filhos) no dia 10 de junho de 2016. Não há notícias se esse valor já foi pago.

- Vocês não solucionaram a morte do DG.

Maria de Fátima Silva, mãe de DG.

Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, foi baleado por um policial militar na comunidade Pavão-Pavãozinho. Até hoje, o Ministério Público pede esclarecimentos sobre o caso.

DG foi encontrado morto próximo a um barranco, dentro de uma creche. A Polícia deu sua versão absurda dos fatos, colocando em DG a culpa pela sua própria morte. Manipularam o corpo, plantaram provas e afirmaram que ele só foi alvejado por ter corrido. O corpo de DG foi encontrado molhado, machucado, com um tiro pelas costas e com a camisa intacta. Sua morte foi motivo de vários protestos e, em um deles, outro rapaz foi assassinado.

Após a repercussão do caso, pelo fato de DG ser dançarino de um programa da Globo e pela resistência de Maria de Fátima Silva, sua mãe, o caso ganhou a mídia e até hoje continua não solucionado. Segundo o delegado, “após ser alvejado, ele correu e pulou sobre uma caixa d’água, cuja tampa se quebrou. Por isso o corpo estava molhado. Depois ele se levantou e correu. No desespero, pulou cerca de sete metros, se machucou e morreu no local”. Não é necessário muito conhecimento técnico para ver quantas mentiras estão escondidas nesta versão oficial.

A voz feminina que aparece na música de MC Carol é da mãe de DG, na sua longa luta por justiça.

- Afastamento da Polícia é o único resultado. Não existe justiça se o assassino tá fardado.

MC Carol dá voz a uma das várias pautas do Movimento Negro: desmilitarização da Polícia. O Conselho de Direitos Humanos da ONU já recomendou o fim da Polícia Militar no Brasil há mais de 4 anos.

A militarização da polícia é uma das causas dos níveis absurdos de violência policial e a justiça própria que os policiais recebem por serem militares permite a impunidade total, que nos leva ao genocídio da população negra periférica sem grandes empecilhos.

A estrutura militar trabalha com a cultura de guerra. O civil vira um inimigo que deve ser combatido, aniquilado. Um agente de segurança é feito para deter e levar suspeitos a julgamento, o que preconiza nossa Constituição, e não para exterminá-los como em uma zona de guerra e para blindar os policiais de punição quando cometem assassinatos.

- Bandido rico e poderoso tem sala separada, tratamento VIP e delação premiada

Presidente da UTC, Ricardo Pessoa, sendo preso, sem algema. Policiais Federais gentilmente o ajudam a levar as malas. Foto por: Marcos Bezerra — Estadão.

MC Carol faz aqui uma crítica à Justiça do país, que trata com diferença gritante o criminoso rico (ainda que sua culpa esteja provada) e o suspeito (ou nem suspeito) periférico. A referência à Operação Lava Jato, a última que ganhou mídia no país, é a mais imediata, mas ela não é a única vez em que criminosos ricos, poderosos e, obviamente, brancos receberam tratamentos de luxo, com direito a ar-condicionado, comidas especiais, prisões domiciliares, prêmios para denunciar seus cúmplices (diminuição de pena, por exemplo), entre outros privilégios. Ao negro não cabe nem julgamento, uma vez que a pena de morte está liberada nas mãos de policiais, que torturam sistematicamente pessoas e crianças inocentes nas periferias do Brasil e saem, em sua esmagadora maioria, ilesos e impunes desses atos.

- Na televisão, a verdade não importa. É negro, favelado, então tava de pistola.

Ilustração por Aline Valek

Esse dedo na cara não é só para as emissoras manipuladoras de televisão. É para cada um que não se importa com o genocídio negro. É para cada um que ouve um caso de alguém morto na periferia e pensa “boa coisa não estava fazendo”. É porque nossa sociedade é permissiva e racista que a polícia coloca armas na mão de pessoas inocentes assassinadas por ela, que conta versões absurdas na TV de seus crimes e isso é aceito naturalmente pela sociedade, porque para ela é natural e comum que o negro seja uma criatura perigosa, criminosa e inapta a viver em sociedade.

Se a Globo, por exemplo, tem coragem de exibir um policial afirmando que Cláudia Ferreira — que foi arrastada por uma viatura de polícia a luz do dia, em público, por 350 metros, após ser baleada quando ela ia comprar pão — estava armada com quatro armas, mesmo isso sendo impossível até para o Chuck Norris, é porque ela tem um público que ouve isso e acha perfeitamente plausível.

E então…

É por essas e por muitas outras que reitero: por mais que eu conheça de cor até as músicas lado B de Queen B, muito mais que qualquer Beyoncé, MC Carol lacrou. E muito. Que nosso complexo de vira-lata nos permita enxergar a grandiosidade do que os nossos fazem ao invés de compará-los com qualquer coisa muito menor, mas que fale inglês.

Recomende esta postagem (através do❤ abaixo)e espalhe esta ideia. Siga também o TW: Preta! no facebook:

|Facebook |

--

--