A benção do silêncio

Plinio Zunica
UM BICHO
Published in
3 min readJan 29, 2019
Catarine Eaton Skinner

O mundo anda tão estranho que quase esqueci que hoje minha mãe faria 61 anos. Imagino como seria se ela estivesse viva. Talvez um pouco mais gorducha, os cabelos rareando muito brancos, contrastando as olheiras fundas da minha avó. Provavelmente ela acordaria mais cedo pra bater em paz o próprio bolo, ouvindo breguices na Alpha FM. Tomaríamos um café da manhã lento, ela e os dois filhos, e seria um dia bonito. Mas é inevitável pensar que, entre um Fagner e outro, ela ouviria incessantemente os boletins da cobertura do crime de Brumadinho, e eu sei o quanto isso amargaria o nosso comercial de margarina.

Gostaria de pensar que ouviríamos música, conversaríamos tranquilamente e ela estaria relaxada. Mas sei que ela deixaria a televisão ligada na Record, na esperança inútil de um lapso da câmera mostrar de relance um pedaço do meu pai, enquanto se exporia à toxicidade daquele jornalismo publicitário, sensacionalismo policial e fundamentalismo religioso enlouquecedor. É inevitável pensar em quanto mal faria à minha mãe receber no whatsapp bombardeios de ameaças apocalípticas, propaganda armamentista e mamadeiras de piroca vindas de pessoas inocentes, burras ou cretinas mas que ela ama mesmo assim. Que bagunça isso faria na cabeça de uma mulher que sempre acreditou de um jeito quase santo no melhor que há nas pessoas. Ela, que era chamada de louca porque falava com a natureza, de repente cercada de terraplanistas inquisitoriais babando sangue. Imagino a dor da decepção. É possível que ela precisasse tomar um ou dois (mais provável uma dúzia de) comprimidos pra aguentar o baque da idade, das doenças e desse mundo sujo, e eu sei que esse governo “meritocrático” consideraria que ela não vale o custo-benefício e inescrupulosamente cortaria o suporte à vida da minha mãe.

Eu gosto de imaginar nós três — eu, minha mãe e meu irmão — só tomando café sem dizer nada. Seria bom. Mas talvez, quando ela sorrisse olhando os filhos sentados à mesa, confortáveis e seguros, fosse menos por alegria genuína e mais de alívio. Afinal, meu irmão é um ativista do indigenismo no país que lidera o ranking de assassinatos de ativistas ligados à terra, meio ambiente e povos nativos, enquanto eu sou um mero professor e pretenso poeta numa terra que mitifica a ignorância e queima livros. E mesmo que não sejamos um alvo prioritário dessa Nova Era Neo-fascista, eu sei o medo que ela sentiria quando pensasse que o novo presidente miliciano prometeu mandar gente como a gente — como nossos amigos, amores, parceiros de vida e luta — pra cadeia, exílio ou cova. Ela passaria noites em claro, sabendo que agora os fanáticos que saíram do armário estarão armados e caçando os nossos nas ruas. E quando imagino nosso café da manhã, posso sentir a tensão nas costas da minha mãe, o aperto na garganta quando eu perguntasse o que, de verdade, ela queria de presente. Porque eu sei, e ela também saberia, que era algo que a gente não poderia dar.

Hoje minha mãe faria sessenta e um anos, e é claro que eu gostaria de poder abraçá-la, pedir conselhos e comer um pedaço de bolo pra adoçar o inferno lá fora. É um domingo de sol, e eu gostaria de escrever um texto bonito que aliviasse um pouco a aflição de quem o lesse. Mas eu não posso. Porque a verdade é que, nesse momento, se o espírito da minha mãe permanecer vivo em algum lugar, o presente que eu mais gostaria de dar a ela seria a benção de não poder ver isso em que nos tornamos.

27.06.2018

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