A Guerra, de Yuri Cortez — Prefácio e três poemas

Plinio Zunica
UM BICHO
Published in
6 min readJul 20, 2018

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“a curva do rio só leva a mais rio

é nas bifurcações que verdadeiramente se morre”

Ano passado tive o prazer de acompanhar o processo de gestação d’A Guerra, o livro de poemas do Yuri Cortez. No fim, ele me pediu pra escrever uma orelha curta pra o livro, mas eu sou prolixo por demais e escrevi um prefácio imenso. Segue, então, o texto de apresentação e mais dois poemas.

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Prefácio à Guerra

Incerto dia, um primata ambicioso empunhou um pedaço pesado de osso e descobriu nele as inúmeras potencialidades da violência. Possivelmente naquela mesma noite, algum macaco mais sensível olhava as estrelas e, entre iluminado e atônito, fazia a primeira e mais fundamental pergunta. E assim foram traçadas as linhas divisórias entre nós e os outros animais. Essa transubstância indomável pulsando no peito, fogo prometéico, serpente e maçã, esse erguer e rasgar famélico a que chamamos Humanidade, é feito essencialmente de duas coisas: guerra e poesia.

Beligero ergo sum. Desde os primeiros fenícios até os fenícios em que nos tornamos, ou desde quando queimamos roma pela primeira vez, ou ainda da distante memória da primeira gigantomaquia, desde que um homem colocou uma cerca sobre um pedaço de terra e disse “isto é meu”, somos guerra. Guerrear é humano, demasiado humano, e às vezes fica tão difícil discernir onde começa a cabeça de uma guerra e acaba o rabo de outra que chegamos a pensar se não é isso a paz, ou pelo menos toda a paz que merecemos.

Por isso, a poesia.

Este é um manual para os tempos de guerra. Não para subjugar o inimigo, conquistar territórios, tornar-se presidente ou funcionário do mês nem nenhuma dessas pequenezas de tecnocratas empunhando ossos. Trata-se de um guia não para vencer, mas saber pelo que se luta e seguir lutando, o que é bem mais importante quando a batalha se confunde com o tempo. Ensina a identificar a guerra escondida nos muros, nos meninos das calçadas, nos olhos amarelos do rei, na música dos ratos, no dragão sutil devorando-nos noite após noite sem que sequer nos importemos mais. Trilhar a grande jihad e combater não só os lobos, mas a pŕopria sede de tornar-se lobo. É um tratado da arte de guerrear como um poeta.

A lição mais importante do bushidô do Yuri é o afeto. É uma poesia de combate, engajada, consciente, um chamado às armas, mas sem sombra de rancor ou desespero. Quando olha para as vítimas da guerra, é com dignidade e carinho de irmão. Quando fala contra os algozes, é com a grandiosidade de quem lamenta a ignorância dos homens que não sabem o que fazem. E mesmo o cansaço de quem luta uma guerra dessincronizada é um cansaço sem resignação, sem mostras de desistência ou hesitação. Um cansaço de ancião que permanece menino, e por isso calcula, teoriza, reflete sobre todos os desdobramentos da guerra, mas sem amargura, sem perder a inocência e o deslumbramento das coisas sublimes. Como excelente professor que é, discute didaticamente as opressões estruturais, os mecanismos ideológicos do neocolonialismo, a perfídia capitalista e ordem secreta pela qual o mundo é o mundo. Distribui conselhos sobre o combater e o cantar, mas aconselha sem a empáfia do Elefante na palma de sua mão — talvez por conta do riso dos jabutis mordiscando-lhe as orelhas.

O elefante do Yuri não é como o elefante de drummond, porque este poeta beligerante desenvolveu a arte do zen-gauche. As contradições e deslocamentos do Yuri se harmonizam, convivem em equilíbrio, como a serpente e o tigre em seus joelhos repartindo o amor do elefante gramático e revolucionário.

Esse deslizar por sobre a turbulência é provavelmente o que mais admiro no meu amigo Yuri. Ele é comprometido, disciplinado, beligerante, pero sin perder la ternura jamás, sempre com uma gentileza e cortesia desconcertantes. Desarma as adversidades sorrindo, como um judoca que joga o oponente contra seu próprio ataque e em seguida lhe estende a mão para erguê-lo do tatame. Mesmo nos dias de dor de cabeça, nas longas reuniões em domingos e feriados, diante das pequenas falhas irritantes do dia a dia e das colossais nuvens cinzentas que se adensam sobre todos nós, nunca vi nele o menor sinal de grosseria ou impaciência. Esse poeta peleja com a paixão e gentileza que só um militante franciscano e seresteiro é capaz. É com esse espírito de acolhimento e irmandade que a poesia dele nos inspira às armas e ao amor.

Tenho um post-it sobre a minha cama para me lembrar todas as manhãs do que consiste o nosso ofício:

engolir dragões,

vomitar estrelas;

engolir dragões,

vomitar estrelas

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roma

é vital que nos lembramos que
quando roma cair
o fogo e a fumaça não cairão sobre as cabeças dos patrícios

não cairão, veja bem

eles já casam seus filhos com as filhas dos visigodos
e seus netos já aprendem a cavalgar com os mongóis
e eles já tem negócios lucrativos e grandes fazendas para descansar na gália
enquanto comemoramos a queda de roma

e enquanto comemoramos seu incêndio
talvez o sobrinho de um ou outro senador seja mutilado
talvez os francos queiram a cabeça de uma ou outra matrona da cidade eterna

e talvez os soldados bárbaros como nós deflorem vestais de nobres famílias
mas a maioria dos senadores levarão consigo na bagagem seus sobrinhos e matronas e vestais
para algum lugar tranquilo no mediterrâneo ou no caribe
onde também terão escondido todo seu dinheiro
e quando as chamas baixarem e
estiver moribunda a itália e
de alguma outra cidade levantar-se um imperador
então os senadores levarão consigo sua bagagem e seus filhos e suas mulheres
e agora serão duques ou mandarins ou deputados

quando roma cair
o fogo e a fumaça cairão sobre as cabeças dos pequenos
dos órfãos romanos e das viúvas romanas
e dos bárbaros desavisados que moram em roma e se vestem como romanos

é vital percebermos
e constantemente nos lembrarmos uns aos outros
é vital que nos lembremos de tudo isso
quando roma cair

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mestre manuel

mestre manuel como de praxe levantou-se cedo aquele dia deu um beijo na sua maria e saiu correndo trabalhar; mestre manuel vendia sonhos brigadeiro e bolos variados tinha os cabelos enrolados e os olhos eram lá menor; e todo dia no tomar da condução como se fosse uma oração o cobrador lhe perguntava: o manuel como a vida te trata? a vida até que se leva mas um dia a maria me mata. mestre manuel vendia sonhos pra pedestres e pra motoristas com desconto pros malabaristas que malabaravam no farol; mestre manuel quase cantava no anunciar da sua mercadoria não comprava só quem não lhe ouvia e os pra quem sonhar fazia mal; e todo dia no tomar da condução como se fosse uma oração o cobrador lhe perguntava: o manuel como a vida te trata? a vida até que se leva mas um dia a maria me mata. mestre manuel por um engano ou por maldade foi levado pra delegacia nunca mais voltou pra sua maria ai que saudade nunca mais o cobrador falou: o manuel como a vida te trata? a vida até que se leva mas um dia a maria me mata.

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aluguel
o peso do seu braço no meu peito
abafa a luz do poste que perfura
meus olhos, que afasta a noite escura
e aclara o chão concreto em que me deito
o peso do seu braço no meu peito,
abafa, como a chuva, a paúra
dos cães e dos fiscais da prefeitura
das contas e juízes de direito
seu braço no meu peito é uma estrada
que rasga no meu rosto um sorriso,
é cicatriz ferida que não sara
guardada no meu peito, joia rara.
amor, pra seguir vivo eu só preciso

tem gente que é parida de um tamanho
seu braço no meu peito, a lua, e nada

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