Um sentimento perigoso

Plinio Zunica
UM BICHO
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6 min readOct 21, 2018

Quando eu me mudei para o Egito, o país sofria as consequências da Primavera Árabe e o general Abdel Fattah al Sisi havia acabado de subir ao poder. O contexto político e histórico é completamente diferente do Brasil, e não vamos cometer a irresponsabilidade de comparar os cenários. Mas havia um sentimento…

Eu falo muito pouco sobre o Egito, e acho que é porque nunca entendi bem o sentimento que havia ali. O ar era pesado e o riso era nervoso. Nos cafés se assistia muito futebol, jogava-se gamão, muito chá e narguilé, mas havia um tipo de silêncio duro em meio às rezas e gritos de gol.

Na primeira semana, quando saí pra fotografar a cidade com um amigo, um policial nos parou, inspecionou a câmera, pegou nossos passaportes, fez alguns telefonemas e nos segurou por um bom tempo, fazendo perguntas e insinuações. No final mandou que eu apagasse as fotos e deu a entender a sorte que eu tinha por ser estrangeiro. Nas ruas, as pessoas eram amistosas, puxavam assunto, mas ninguém falava sobre a Primavera, sobre o general, ou sobre qualquer questão política. Um professor me avisou sobre um grupo de mulheres que foram presas por darem uma entrevista. Ativistas e jornalistas amontoavam as cadeias. A universidade de Al-Azhar expulsou 76 alunos por protestarem contra o governo. Duas vezes, no meio da madrugada, policiais sem uniforme revistaram meu apartamento. Muitas histórias sobre pessoas sendo falsamente denunciadas por causa de rixas pessoais, implicâncias, concorrência comercial, vingança. Perto de casa foram três atentados à bomba, mas eu só senti o impacto da explosão na embaixada. Meu vizinho foi preso duas vezes naquele ano. Eu parei de fotografar.

Me lembro do espanto quando vi a Praça Tahirir pela primeira vez. Sonhei com ela muitas noites, antes e depois de conhecê-la. A gloriosa Praça que concentrou o maior protesto popular deste novo século é uma rotatória pequenina, pedacinho humilde de verde espremido entre o complexo burocrático do país e o ministério da Defesa — o que só aumentava sua grandeza. Na véspera do aniversário da Revolução, uma estudante tentou levar uma coroa de flores para Tahrir, mas um soldado a impediu com um tiro na cabeça. Eu passava por ali quase todos os dias, e era espantoso ver como é fácil apagar sangue do chão.

Mas não era só uma questão de quem estava no poder.

Tantas vezes eu tentei escrever sobre o que eu sentia vendo as mulheres ao meu redor, mas nunca consegui. O Egito tem longa e forte tradição de movimentos feministas, grandes intelectuais, artistas e ativistas, mulheres em posições de poder e destaque, mas continua sendo considerado o pior dos países árabes para as mulheres. Não é nem o governo nem a religião o que provoca a discriminação, os estupros, a violência doméstica, a mutilação genital.

Me lembro de uma tarde de sexta-feira em que eu me sentei em um café para escrever. O meu bairro, Boolaq Abu-Laila, é um lugar bastante pobre e popular (ou shaabi), e os cafés eram frequentados exclusivamente por homens. Não era proibida a presença de mulheres, e nunca vi nenhuma mulher ser diretamente hostilizada ali, mas o sentimento era imperativo. Então, nessa tarde insuportavelmente quente de sexta-feira, eu me sentei para escrever e tomar sahlab gelado. Foi então que uma senhora, coberta com um pesado niqab preto e trazendo pela mão uma menina de não mais do que sete anos, entrou no café. Ela carregava uma mala cheia de bugigangas pra vender, como fazem muitas das mulheres do Cairo que sustentam a família. Eu comprei dois pacotes de lenços de papel. Ela perguntou para Gamal, o dono do café, se a filha podia usar o banheiro. O sempre gentil Gamal pediu desculpas, mas o banheiro ali, como em todos os cafés do bairro, só tinha mictórios. Aquela arquitetura não pressupunha necessidades de mulheres. Resignada, a senhora ergueu a mala e foi embora, puxando pela mão a criança que torcia as perninhas com desespero de mijar. Eu voltei pra casa e tive uma crise de choro.

Eu não falo muito sobre o Egito porque é um sentimento difícil e contraditório. Aprendi coisas maravilhosas com um povo que não criminaliza a pobreza; que durante um mês inteiro coloca a mesa na rua pra dividir o pão com estranhos; que sempre tem tempo pra sentar do seu lado num café e perguntar tudo sobre a sua vida enquanto te paga um chá; que ama a poesia e sabe lutar. Vejo vídeos da Primavera, penso nos grafites nas paredes, lembro das histórias que vi, ouvi e vivi e me admiro da força daquele povo majestoso. Mas imediatamente me vêm um frio no pescoço e sinto de novo o peso das cabeças baixas. Todos os dias eu ouço música de lá, mas há tempos que não consigo ler as notícias. Quando penso no Egito, eu sinto duas coisas: uma saudade vasta e um receio terrível.

Eu me lembro da primeira marcha do impeachment no Brasil. Por conta do fuso-horário, o meio dia daqui chegava lá às 17h do dia anterior, e por isso passei o dia inteiro esperando pra acompanhar a barbárie pela internet. Meus amigos não entendiam minha ansiedade, achavam que aquilo ia ser fogo de palha, coisa à toa, e eu fui terrivelmente grosseiro com eles, porque estava apavorado. Acompanhei toda a cobertura da marcha, repleta de cidadãos-de-bem vestindo camisetas da CBF ao lado de neonazistas declarados; pedidos de socorro aos militares; cartazes misóginos e homofóbicos; bonecos de Lula e Dilma sendo enforcados e queimados; muito ódio e lágrimas de emoção diante de um tempestuoso hino nacional.

Depois de ver aquela marcha, eu saí perdido pelas ruas do Cairo. Parei no Al-Huriat — “A Liberdade” — , um dos únicos lugares da cidade em que você pode beber álcool com relativa tranquilidade. Precisava tomar um porre, mas pensei que podia ter problemas se me vissem voltando pra casa bêbado e transtornado. Tomei só uma cerveja e, na volta, parei na loja de bebidas e comprei uma garrafa da pior imitação de whisky que já provei. Virei a madrugada numa crise de ansiedade horrível e, de manhã, escrevi um texto no meu blog, que depois foi replicado em vários sites, intitulado “não subestimem o ódio, ignorância e medo”. Muita gente me xingou por causa dele, desde estranhos até amigos, e cheguei a receber umas ameaças, mas até aí normal. É interessante ver, hoje, quem se arrependeu daquele dia e quem pegou gosto pelo fascismo.

Eu estava em pânico porque havia acabado de voltar da Palestina, onde o sionismo criou uma sociedade militarista e um sistema de apartheid baseado em uma narrativa de poder e medo, ultranacionalismo e superioridade étnica, moral, religiosa e civilizacional. Um sistema que justifica a violência, a tortura, a condenação baseada na pura convicção, o aprisionamento de crianças, a eugenia e genocídio como solução final. Um sistema que faz com que opressão se confunda com defesa; dominação soe como caridade; assassinatos pareçam justiça. E mesmo sabendo que o contexto é absolutamente diferente do Brasil, havia esse sentimento…

Na Palestina o sentimento era diferente porque você sabia quem e o que combatia. O inimigo usava uniforme. No Cairo, o sentimento era uma sombra.

Foi então que eu adoeci. Já havia estado em fundos de poços que pareciam muito mais fundos, mas dessa vez era diferente, porque ali o sentimento não vinha de dentro. Era algo que estava estava no ar. Respirar ficava cada dia mais difícil e eu não tinha pra onde correr nem sabia pra quem pedir ajuda.

Eu adoeci, perdi grande parte do meu curso e acabei sendo jubilado da universidade (que também era minha casa e meu ganha-pão). Perdi a força e a confiança. Foram dois anos longos e difíceis até, com a ajuda de algumas poucas e boas pessoas, voltar a mim. Hoje, me sinto novamente capaz de respirar. Mas eu trouxe do Cairo um silêncio no peito que acredito ser pra sempre.

Não sei bem por que, mas só agora consegui contar essa história.

Por favor, cuidem uns dos outros. Há um sentimento perigoso no ar.

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