(Horácio’s Dream)

Conversinha

Asafe Gonçalves Pereira
Um Café
3 min readJan 21, 2017

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Nestor, meu caro! Precisava mesmo falar contigo. Hahah isso mesmo! outro sonho que carece de um bom par de ouvidos… Deixa que o Alfredo cuida da mesa. Senta e escuta.

Estávamos, Ju e eu, num casarão antigo. Calma! Explico num momento. Estávamos num casarão. Aos poucos percebi se tratar de uma loja. Uma estranha loja rústica, com salas e janelas grandes demais, mas sem muitos artigos que vender.

Curiosamente e contra minha natureza, não reparei nos mostruários — se é que havia mais de um — , apenas num divã que também me parecia grande demais; era proporcional, mas desnecessariamente volumoso, feito de um metal polido e escuro — obviamente desconfortável — , bem no centro do salão principal, sob o foco de uma luz muito branca e fria.

Chamava mais atenção do que parecia merecer: por maior que fosse (e era definitivamente grande demais), tratava-se de um item produzido em série. Esbanjava aquela mediocridade disfarçada de elegância que se vê no excesso de perfeccionismo em certos produtos cuja utilidade raramente justifica o preço. Sei que você e eu discordamos bastante quanto à utilidade da arte, mas havemos de concordar que arte não se produz em lotes, certo? Bom, na verdade o divã pouco importa! O importante é que a loja ia se enchendo de gente e um clima descontraído tomava os ambientes, o que levou ao que se segue.

Iniciei uma conversa. Só pra preencher aquele vazio que estar à vontade entre desconhecidos sempre cria. Percebi que Ju respondia sem fazer muito caso. Isso noutra ocasião me irritaria, você sabe! Mas julguei ser aquilo a que hoje chamam “educação” por parte da moça; eu, novamente contra minha natureza, retribuí com a falta de profundidade que a boa educação nos exige.

Para minha própria desgraça! O que a princípio parecia polidez, mostrou-se, por fim, uma enxurrada de assuntos rasos que nos carregou (a mim e a Ju) às profundas águas da conversinha. Sim, conversinha! Como não conhece? Ora, aquele ritual batido de perguntar das novidades, do clima, da família, mas sem nunca responder de fato; pois sim, muito prazer: conversinha!

Logo a correnteza nos trouxe do salão adjacente duas profissionais da modalidade contra as quais não tínhamos a mínima chance: vendedoras! O que vendiam permanece um mistério, pois me escapa se houve qualquer menção de preços, entregas, medidas ou mesmo explicações sobre a exótica coleção à venda. No entanto, fora o lamaçal de conversinha em que nos encontrávamos, fomos muito bem tratados pelas senhoras.

— Então você fala chinês? — Perguntou uma delas, habilmente ressuscitando um assunto que acabara de ser abandonado.

— Quase nada — respondi num cantonês mais que enferrujado. Hein? Não, Nestor. Não falo cantonês. Olha, eu deixei claro quando comecei a narrar que se trata de um sonho, mas sua atenção parecia estar toda nos que você trouxe da padaria!

Bom, o importante é que a partir de então só conversamos na língua oriental. A conversa foi longa. Meu vocabulário era mais extenso do que eu imaginava, mas não suficiente para evitar as sucessivas pausas para encontrar os sons e pronúncias apropriados. Claro que não, Nestor! Não consigo repetir nada, foi sonho! Então uma delas solicitou que eu falasse com um sotaque de chinês da Califórnia — o que quer que isso significasse! Respondi que nunca estivera por lá e não fazia ideia de como tal variedade soaria — tampouco sei de onde tirei essa resposta.

A Ju, por outro lado, estava se dando muito bem entre o Mandarim e o Cantonês, que ela jurava ter aprendido de um guia de viagens justamente para a “ocasião”. Que ocasião?! A visita a uma lojinha pomposa, que nada apresenta além de pompa? Hah-hah só mesmo a Ju!

Sim, e é isso o que tem me atormentado desde que acordei desse sonho esquisito! Te devolvo a pergunta: quem diabos é Ju? Não sei, nunca vi. Pelo que sei pode ser Juliana, Jurema, ou só “Ju” mesmo… não sei! Só existiu no casarão, mas juro que somos amigos. Confesso que não é a melhor companhia para um café, mas garanto que, se a visse na rua hoje, a reconheceria e conversaríamos sobre o clima, a família e as novidades.

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Asafe Gonçalves Pereira
Um Café

Impostor em vários frontes. Usuário de drogas pesadas, a saber, café e transporte público. Viciado numa, dependente da outra.