Um café sobre o descanso

Horácio e Alfredo

Asafe Gonçalves Pereira
Um Café
5 min readAug 25, 2015

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— Certa vez li que a eternidade é quando o pensamento descansa — ou pode descansar, faz tempo que li –, mas me lembro de ter concordado tão plenamente quanto hoje. Para mim, eternidade é quando o pensamento pode descansar.

— Também já li isso aí… Pra falar a verdade, poucas vezes eu neguei alguma coisa com tanta veemência. Lembro de ter falado “não” em voz alta enquanto lia mesmo…

— Haha, claro. Quase consigo ver sua expressão de horror diante de uma afirmação assim tão desanimadora — desanimadora é o que você diria, não? Aliás, sabe que me pegou de surpresa aquela sua ideia de felicidade no blog da Gabi? “Talvez na eternidade quando envelhecer a beleza da nossa ignorância” brilhante! De onde veio aquilo? Se concordo com qualquer das suas afirmações ali, esta é certamente a tal. E, ciente ou não, você sugeriu o descanso ali.

— Não sei se você entendeu direito não, Horácio. Não foi bem isso que eu quis dizer. A Gabi pressiona, você sabe… Ligou aquele gravador e me encheu de perguntas! Talvez tenha te confundido o modo como coloquei as palavras. Ó, acabei de coar. Vai uma xícara? Açúcar, adoçante…

— Aceito sim, obrigado… aliás, eu lhe trouxe meio quilo de mascavo. Agora, sobre sua epifania — sim, vou chamá-la epifania, já que você não sabe o que quis dizer — entendo perfeitamente! Não eram suas palavras para que você as colocasse; eram tão alheias que nada do que você disse depois as reiterou. Você inclusive as contradisse logo em seguida! Não. Não acho que era você quem queria dizer, meu caro. Certas coisas simplesmente são ditas através de nós, sejamos gratos. Assim chega; não posso com café a essa hora, mas esse cheiro… hm… Mas claro! Entendo que possa ser desanimador aventar que o pensamento um dia descanse.

— Desanimador? É medonho, isso sim! Uma das ideias mais apavorantes que já me foram apresentadas. hm-hm! Ficou forte demais… mas imagina só, no fim, quando finalmente superar as limitações do tempo e do espaço, o pensamento resolver que é hora de uma soneca? “Desanimador” fica forçosamente aquém, Horácio.

— Sim, eu dizia que certamente entendo que pareça desanimador, triste também, a mentes curiosas e ativas — como sei ser a sua — a imagem do descanso do pensamento. Mas convenhamos que eis aí um equívoco e um paradoxo. O equívoco é pensar no descanso como algo passivo ao invés de uma atividade. O paradoxo é que você creia em sua bíblia e na parte em que o próprio Cristo diz “e naquele dia, nada me perguntareis”, não?

— Na verdade, não. Entendo aonde você quer chegar, mas não há paradoxo nenhum: nada perguntar não implica a ausência de dúvidas. E sem mencionar toda a questão contextual. Uma coisa não pressupõe a outra.

— Ora, pressupõe sim, Alfredo. Principalmente porque quem parece te negar o direito à pergunta é precisamente quem tem todas as respostas. Fosse um deus tirano — e não cremos que Ele seja — não somente permaneceríamos com nossas dúvidas, como também nos seriam acrescentadas outras tantas. É assim que você espera que aconteça? Não? Aposto que é! Pois bem. Não confundamos a fome com o alimento. O desejo só é bem-vindo quando há o que o satisfaça. Ou me engano? A fome sem alimento não passa de humilhação e tortura! Assim também a dúvida, meu caro, só apraz enquanto temos esperança de resposta. Entende o que quero dizer, Alfredo? Se Deus é bom, o pensamento há de descansar, sim.

— Entendo, mas acho que discordo… você percebe que sem desejo a satisfação não existe? Sem a fome o prazer de comer é terrivelmente reduzido! O desejo é anterior à satisfação e superior a ela. É pelo desejo que vivemos; são as dúvidas que nos movem em direção a qualquer resposta… e é primeiro pela fome que comemos. Não acho que seja interessante o fim do desejo, nem o fim da atividade de pensamento…

— Não é o fim da atividade, perceba, Alfredo, apenas sua evolução — estou certo de que você conheça o conceito sob outro aspecto –, acontece que não é um descanso passivo. Imagine a brincadeira de caça ao tesouro: durante a busca, a procura é tudo o que conhecemos; é tudo o que importa até então, e nós, os participantes, só sabemos procurar. Quando, porém, encontra-se o prêmio — e somente a partir de então — a busca perde o sentido, e o perde definitivamente. Nenhum participante em pleno juízo continuaria a procurar, ou desejaria não ter encontrado o tesouro.

— Claro, Horácio. Mas ao fim de tudo isso a brincadeira começa outra vez! A diversão consiste em procurar pelo tesouro; quando ele é encontrado a busca necessariamente recomeça — e existe uma ansiedade por recomeçar e poder procurar novamente, e encontrar novamente.

— Não, Alfredo. O fim não é recomeço. Não dessa forma repetitiva. Encontrar o tesouro estabelece uma nova etapa na brincadeira: a fase do descanso; a fase em que se aproveita o prêmio. Por mais empolgante que seja a busca, comer o chocolate encontrado é igualmente (se não mais) prazeroso; e é o correto a se fazer na nova fase. Qualquer um que recuse o chocolate (ou a guloseima em questão) e proteste que “devemos continuar procurando” é obviamente louco ou não entendeu o objetivo da brincadeira… Por falar nisso, ainda tem daquele chocolate que a Gabriela te trouxe semana passada?

— Hah-hah, pior que não. Ela se lembrou que tinha esquecido o aniversário de um afilhado e levou o que sobrou… mas o Nestor daqui a pouco chega aí com o pão. Bom, eu entendo o que você quer dizer, mas, sem querer extrapolar sua analogia, ainda penso que depois que todos participantes se empanturram de doce, a brincadeira recomeça. O recomeço permanece, Horácio; o descanso não.

— A meu ver, o que realmente permanece é a atividade. O recomeço, por si só, traz desapontamento quase sempre. É como um jovem que tenta reviver a experiência de um intercâmbio estudantil meramente refazendo o itinerário; certamente ele se decepcionará. Afinal faltam elementos, como a novidade ou a companhia, que estavam presentes na viagem anterior. A decepção não ocorre porque a viagem é ruim; o itinerário é igualmente bom. A decepção ocorre simplesmente porque a expectativa foi mal fundamentada. Como você disse: se não há fome, não comemos; e se ainda assim comemos, nos decepcionamos com a insignificância do prazer, certo? Quem teria gana de procurar por comida estando satisfeito?

— Sim, mas o recomeço, bem ou malsucedido, é inevitável, Horácio… ou melhor, é instintivo. E passado algum tempo, a fome sempre volta… é da natureza recomeçar.

— O que me parece estar com efeito na natureza é o continuar, meu amigo; no caso do nosso dilema, ir além da barreira das dúvidas, exatamente por estarem todas respondidas, e nós, satisfeitos de conhecimento. E não há que se preocupar com o retorno da fome; ora, o próprio Senhor disse a João que então nunca mais haverá fome ou sede. Seria um erro depositar a expectativa no recomeço e não na continuidade. Não, o fim não é recomeço, Alfredo. Não dessa forma repetitiva. E você tem razão; é bom e natural que se continue a brincar, mas é melhor quando não é sempre a mesma brincadeira, certo?

— Opa! Deve ser o Nestor. Atende a porta que eu preparo a mesa.

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Asafe Gonçalves Pereira
Um Café

Impostor em vários frontes. Usuário de drogas pesadas, a saber, café e transporte público. Viciado numa, dependente da outra.