Água com Gás

Rafael Shintate
um retrato infiel
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5 min readAug 9, 2021

este é de hoje, nove de agosto, uma manhã até mais quentinha do que tem sido recentemente.

Ardor.

O colega e o professor batiam um papinho, meio small talk, meio aquela conversa meia-boca que o “velho” de meia-idade (velho que seria quase um idoso se tivéssemos três anos a menos ali no começo doc urso, mas que pra gente ali já anseando pelo dia da formatura em que pudéssemos ir direto pros respectivos fórum/escritório/qualquer outro lugar de trabalho que aquele maluco franzino e ranzinza que chegava sempre atrasado e sentava na segunda cadeira do fundo pra frente da terceira coluna da janela pra sala [que sempre ficava vazia porque o assento rangia e era meio bambo] já era praticamente nosso sabido e levemente desgastado companheiro de serviço) tinha toda vez que chegava meio afobado na sala e sentava na mesa do professor, sem tablado, que, curiosamente, também estava bamba — e a reitora ainda tinha a ousadia de se perguntar o por quê ainda reclamávamos se as reformas estavam há todo vapor (tinham estado desde antes de entrarmos no curso e mesmo desde antes de ela virar reitora): a porta dela acabara de receber uma nova maçaneta! a outra tinha estado um tanto enferrujada e rangia, mesmo não tendo nem três anos… mas a conversa do professor era mais sobre como não conseguia ligar o computador, nem abrir direito os slides no PowerPoint, e durante esse teatrinho dele (com seus aproximadamente 57 anos, já tinha dado aula por pelo menos uns três quartos e uns decimos a mais da sua vida, e, no quinto período do dia, mesmo que só se lembrasse do pão dormido com manteiga dura e café amargo demais que comeu no café da manhã e de como trincou o óculos sem querer ao bater na quina da pia de mármore do banheiro da faculdade, certamente se lembrava também de como tinha aberto o material para dar as outras 4) a gente fingia também que se importava com o que ele dizia, com a aula e com o powerpoint todo feio que ele pouco tinha mudado nos seus trinta e tantos anos lecionando, e o sortudo-azarado sorteado pra ser a vítima de toda a encenação fazia comentários pontuais e despreparados pra garantir um pontinho a mais na nota de participação.

Ardor.

Meus olhos tinham ardido a manhã inteira. Tinha acordado depois das tradicionais mal dormidas três horas e quarenta e dois minutos de sono, uma noite tão bem-vivida como qualquer outra que começasse às duas da madrugada do domingo cansado pra uma segunda exausta e terminasse às três da manhã de sábado, completamente embriagado num boteco tão merda quanto qualquer outro que ficam abertos até às três num bairro em que só vivem estudantes de mal com a vida e professores grisalhos que estiveram de mal antes — hoje não dormem nem mais na mesma cama. Não tomara banho — porque tinha tomado na noite anterior, meio a contragosto, porque estava cerca de muito frio graus celsius — nem café, já que nem todo açúcar do mundo conseguiria me fazer tomar algo que para minha casi-jovem língua era praticamente o extrato de todo o amargor da cidade. Mas significava também que não tinha acordado direito, então antes de sair correndo na ladeira íngrime e tão distante quanto pode fazer suar num frio do cão um moleque no auge de seus vinte e poucos anos como se estivesse de fato desesperado e excitado de poder ficar duas horas e meia num ônibus caindo aos pedaços e lotado às tantas pra chegar num prédio meios sujo com mais jovens de vinte e poucos anos e professores grisalhos às pencas, preparei ali pra mim uns dez shots (se é que o google e a minha pouca capacidade de fazer contas estão se combinando bem) de água com tanto gás que um copo de coca cola zero com mentos ficaria com inveja e virei tudo num gole só, ainda dando, já me virando pra encarar o portão do primeiro dos sete círculos do inferno, aquela cartunesca babada de lado que você, o protagonista do épico mais entediante da história, limpa com a manga do moletom dois números maior que nesse frio desgraçado vai demorar o dia inteiro pra secar.

Ardor.

Minha garganta ardia, também. Talvez fosse um ardor metafórico, meio metafísico, de perceber que tinha tomado cerveja demais durante os três dias de férias entre os dois anos de aulas e trabalho, e que, naquele final de semana em específico, tinha misturado coca cola com todas as gasolinas que tínhamos na despensa de casa (escondido, obviamente) na falta da breja que tinha esquecido de comprar; ou talvez fosse um ardor verdadeiro, da lâmina da aguda água com gás que compartilhava algo em comum com tudo o que cercava meu dia até ali, como a luz que refletia nas três lâminas do terceiro ventilador da sala e pegava de leve no canto do meu olho esquerdo, mesmo que só causasse um incômodo totalmente suportável, mas que ainda assim, compilado com todos os outros instantes em que girava e jogava um novo feixe de luz cem por cento igual mas completamente diferente, compunha a melodia de um suspiro exausto.

E com um gole a mais da água com gás (com a qual tinha enchido uma garrafa toda antes de beber os dez shots, apenas três horas e dois milênios atrás), pareci perceber por um breve momento (como toda realização que pode mudar a vida de alguém, pelo menos segundo dizem os que já estão malucos o suficiente pra tomar um chá alucinógeno indígena e têm uma viagem interdimensional de horas sem nem sair do lugar, e se apercebe de si, dos outros, e de tudo que os cerca pra só depois esquecer quando voltam a se ambientar no chão de tudo que passou) que assim como as várias garrafas de cerveja ou a pontada gaseificada da água com gás, o que mais me incomodava de estar sentado numa cadeira fria numa manhã fria tomando água com gás fria e assistindo — se é que é considerado assistir estar ouvindo o professor falar como a trilha sonora do filme mais chato do mundo enquanto se pensa sobre a morte da bezerra, do potro, do cordeiro, e de qualquer outro filhote de fazenda do mundo antes de dar alguma atenção para qualquer seja o artigo sobre o qual vai se falar por um tempo longo demais — é o calor e o aveludado de um cobertor macio, de um leite com muito toddy (que é, sob a minuciosa análise de todos os parâmetros da humanidade, muito mais gostoso que um café amargo), de ler um livro sob um feixe de luz do sol daqueles mais quentinhos, ou de deitar enquanto criança na grama enquanto vê nuvens (esse, só quando criança, porque depois de velho se tem a triste realização de que a grama pinica e arde).

Ardor.

O professor faz alguma pergunta inútil, e eu levanto a mão e respondo. Tomo mais um shot de água com gás, passo a manga do moletom (ainda molhada) sobre o canto do olho esquerdo, e suspiro.

Que inferno, será que essa aula não acaba?

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