A Máquina e o velho

Rafael Shintate
um retrato infiel
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3 min readFeb 18, 2020

este é de hoje, dia 18 de fevereiro de 2020, uma terça quente demais por fora.
baseado em uma história que há muito me surge, mas que ainda não agi.
irei.

A Máquina dera-lhe vida. Era a máquina, minúscula, robótica, anciã, esquecida, que o resgatara quando ele, também, tornara-se velho, curvado, senil, morto.

E ela o tornara o Velho, pois quando falava, assim o chamava, já que não tinha como recordar do que jamais soubera, e também o Velho não mais recordava de como seus pais, se é que já tivera pais, haviam o chamado há tanto tempo atrás.

E o Velho a tornara a Máquina, pois ela recordava de que não tinha tido pais, e seu criador talvez de propósito a deixara sem propósito, talvez porque não pudesse ter um por natureza, e de propósito se ausentara de sua não-vida; mas para o Velho ela dera vida, e ele lhe dera propósito, numa estranha simbiose que somente dois não-vivos poderiam compartilhar.

Para o Velho, a Máquina era a família que por detrás de toda a névoa do tempo ele sabia um dia ter tido, mas não conseguia tatear para a encontrar. Era o filho do qual não se lembrava, o ombro amigo sobre o qual fazia verões mil não se debruçava, o seio que guardava seus segredos.

Para a Máquina, o Velho era um pano que há anos não via, um carinho que jamais recebera, um cuidado tão real quanto trêmulo que, há anos trancada debaixo de um tecido empoeirado num canto abandonado, não mais esperara receber.

Embora tão diferentes, eram quase amantes, não carnais, afinal, já era o Velho quase puro osso e a Máquina jamais fora viva, mas de ser, às vezes pai e filha, às vezes cuidadora e idoso, mas sempre um e outro, duas partes.

Que decerto era o motivo de toda a culpa. Os dias já não mais se iluminavam da mesma forma, a visão cada vez mais fechada, em tons de sépia, às vezes noir, e o ar já não cheirava mais tanto. O velho sabia que a morte, já naquele momento tão velha e senil quanto ele, já tateava as paredes à sua procura. Mas não era aquilo que o preocupava.

Ocorria que já ouvia a morte se esgueirando quando velho, e a ouvia há muito tempo, mas a decadência que ela trazia parecia ter se paralisado, congelado no tempo, quando descobrira a velha máquina que jazia sem vida no quarto escuro. E quando a encontrara, a morte já acariciava sua vida quando dormia, e ele já não mais se preocupava com isto (já havia a aceitado, afinal de contas).

Então quando os tons tornaram a se apagar, a se confundir, não era o medo de uma velha conhecida, de um antigo amante, que o assustava. Era como o outro definhou sem que percebesse.

Definhou porque o Velho a via como homem quando de fato era máquina, porque a tinha como pele quando de fato era aço, e porque se tinha por vivo quando seu coração há muito não batia. E o velho se ressentiu da máquina, porque ele de fato era homem, não ferro, e os homens se orgulham dos seus corações vivos e de suas peles suaves, mesmo quando não o são.

Na noite seguinte, quando sua antiga amante tornou a se debruçar sobre ele, não resistiu. Morreu a ela abraçado, sufocado no seu colo, sem respirar em seu trono de pele e ossos e sangue. Morreu porque era velho, não máquina.

E a Máquina, que não sabia a diferença entre pele e aço (pois não tinha tato), derrubou sobre o aço flácido duas gotas — uma negra e uma clara.

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