A menina sob a touca

Rafael Shintate
um retrato infiel
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4 min readFeb 18, 2020

este data de um natal sem forças nem alegria, em que eu só precisava deste sopro que foi de esperança.

Era uma tarde pálida, sem graça, daquelas em que uma vó sequer recomendaria um casaco e um guarda-chuva, mas que o netinho repousasse em casa sob o calor de um cobertor e de uma xícara do seu chocolate quente. Talvez, se algum desses netos fosse dos moleques mais ousados, e mesmo assim se esgueirasse por entre os móveis empoeirados, abrindo a porta da frente buscando apenas o vento firme da liberdade, ele pudesse vê-la.

Mas na Rua dos Condores não havia moleque ousado algum; aliás, há tempos ali não morara alguém cujo sorriso não carregasse o peso das rugas que o tempo dá. Tempo o suficiente para que o último moleque que fugiu da vó tivesse cultivado com amargor e solidão suas próprias rugas, voltando aos becos da sua infância como mais um dos velhos chatos que a fizeram menos mágica.

E este um dia neto, tão ranzinza quanto a cinza tarde poderia fazer alguém, certamente ao brilho da touca retalhada com cores e tamanhos fecharia sua cortina rapidamente, fechando-se em seu retiro sob a fraca e quente luz do fogo a iluminar as notícias do dia ou o novo romance histórico daquele autor que todos conhecem, mas ninguém sabe sequer o sobrenome.

Não era de grande importância, certamente não para a touca. Os retalhos balançavam, mas sem sentimento ou ressentimento, apenas com a graça de balançar, não com o vento, até porque não havia nenhum; mas com os passos, sem ritmo nem dança, da menina sob a touca. E para ela, a menina sob a touca, também não importava que os velhos da Rua dos Condores fechassem suas cortinas dos mais variados e alegres tons de cinza para ela.

Isto porque a Menina Sob a Touca (este seu nome, já que nenhum dos velhos amargurados da Rua dos Condores conhecia o nome sequer dos vizinhos cujas paredes suas casas dividiam, quanto mais o da menina sob a touca retalhada que ocorrera de um dia andar pela rua sem graça) não os podia ver. Isto é, talvez pudesse, mas não os via. A dança sem ritmo da touca os cobria, e para ela a realidade se bastava nas cores fumegantes dos retalhos sob os quais se aninhava.

Como as folhas de outonos já passados (e cujas cascas vazias, secas e amarronzadas se esmigalhavam pelas rachaduras da calçada), os remendos riam nos mais espalhafatosos tons de roxo, verde, bege e azul, dos pálidos como a luz daquela tão mais pálida tarde aos vibrantes como a dança sem ritmo que eles próprios performavam, cada pequeno pedaço de tecido, disforme e costurado aos demais, com sua história, tão esquecida quanto o nome da Menina sob eles.

Se suas histórias remontavam a dias tão mais passados que o já esquecido passado quando foram costurados à touca da menina, e decerto nem a menina nem morador algum da Rua dos Condores pudessem deles recordar, seus diários (que a menina pensava que tivessem, e talvez realmente tivessem, afinal, que estranha criatura não escreveria um diário?) provavelmente recordariam daquela pálida, acinzentada e estreita rua que era a Rua dos Condores.

Nisto pôs-se a Menina Sob a Touca a pensar, e deixou repousar seu sapateado sem ritmo, descansando também os retalhos, pela primeira vez desde que pusera pé na Rua dos Condores. Ora, se levariam ela e sua touca as memórias tão marcantes das folhas crocantes e da brisa leve, tão mais justo não seria que também aquela brincalhona ruazinha, a das cortinas fantasmagóricas e das casas antigas, pudesse também recordar-se delas?

Então retomou ela sua dança sem dançar, caminhando na ponta dos pés, como se ela, sua touca, e aquela estreita ruela dividissem um tão único e importante segredo, quase saltitando na direção daquela cinza casa a ela mais próxima. Com cuidado, levantou a touca, deixando os fios soltos se aventurarem pela brisa leve, a certa bagunça esvoaçando, quase uma nuvem castanha na Rua dos Condores, e a Menina Sob a Nuvem buscou em sua touca um retalho que quisesse se soltar. Enfim, encontrou um pedaço de pano amarelo, vibrante, que balançou e riu, e sabia que tinha encontrado o retalho perfeito.

Olhando para a cortina rosa acinzentada, como que esperasse que de repente ela se abrisse — mas não abriu, afinal o um dia neto que nela morava estava muito ocupado se inteirando no autor cujo nome ele não queria saber — e deixou voar o retalho amarelo de sua mão.

A Menina Novamente Sob a Touca observou-o ir, com um sorriso estampado, e recolheu do chão uma das folhas — esta não tão seca, nem tão marrom, mas de um tom quase tão bonito de amarelo, e a aninhou sob um retalho qualquer em sua touca. E sem sequer esperar que o Retalho da Rua dos Condores pousasse em sua nova casa, tornou a sapatear, sem ritmo ou detalhes, junto ao correr da calçada, para algum lugar mais, que viria a saber quando chegasse, a encontrar pequenas folhas coloridas para juntar a seu diário.

Foi uma tarde enfim não tão pálida e não tão sem graça não já não mais tão cinza Rua dos Condores, rua esta que trazia consigo, contra todas as empalecidas cortinas, um retalho amarelo, tão vibrante quanto o dia, e tão alegre quanto a Menina Sob a Touca ou quanto um dia poderiam ser, novamente, os netos que foram, se talvez se aventurassem a descobrir o nome daquele tal autor.

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