Erva Doce

Rafael Shintate
um retrato infiel
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4 min readJul 19, 2021

já fazia alguns bons meses que não saía nada, então um textinho meio sem pé nem cabeça que nem esse acabou que me fez bem. mas ele não faz sentido, beware.

este é de hoje, 19 de julho de 2021. tá frio.

ERVA DOCE

O homem me olha de cima pra baixo.

Não como se me escaneasse, porque seus olhos tão fixos nos meus faz parece uma eternidade.

Mas de cima pra baixo como uma torre, um farol, um faroleiro, lá em cima, olha para as pequenas formigas que são os barcos lá embaixo, no mar, sendo atirados de um lado para o outro.

Mas de certa forma, acho que é o contrário.

Porque o farol é o ponto seguro dos barcos, não? A luz no fim do túnel de um dia árduo, e enevoado, e meio tórrido, com a pele pálida rachando por causa do vento e do sal e do cansaço.

Pálida porque só imagino faróis na Noruega.

Acho que é porque nunca vi um farol antes, só mesmo em alguns filmes e desenhos animados que a mãe colocava pra eu ver enquanto ela deitava no sofá com um cigarro na mão e dormia. Eu não tinha espaço no sofá — eu dormia no chão. Nos desenhos animados parece ter um farol em toda cidade, mesmo nas que não têm água, mesmo naquelas que o único barco é algum bote velho e estragado deteriorando e sumindo na garagem de algum filho da puta que já foi rico.

Bom, agora eu meio que vi um farol, eu acho.

A situação é uma só: eu tava tranquilo, agora não tô mais. Totalmente o oposto, né?

Esse é o sentimento.

Desconforto.

O bafo dele me desconforta. Ele cheira como minha mãe cheirava, a cigarro, mas cheira também a fumaça de carro e de fábrica, com leves tons de cachaça, mas quando ele abre a boca cheira meio a erva doce. Eu até gosto de erva doce, quando era pequeno às vezes vovó fazia chá de erva doce pra mim, mas sempre achei meio doce demais.

Se bem que tá no nome, erva doce. Talvez eu que seja muito exigente. Talvez seja um pouco burro esperar que a erva doce não fosse tão doce.

Mas ainda assim, eu até gosto de erva doce, mas o bafo dele é nauseante, tão doce que lembra um pouco o cheiro de morte. É um doce que enjoa e envolve e te faz salivar e sair de perto ao mesmo tempo. Foi o que eu senti quanto pisei num rato. Foi sem querer, mas ele fez um ganido e meio que ficou metade na minha bota, e depois de um tempo eu senti o cheiro de decomposição e por baixo senti a morte, meio doce, meio enjoativa, totalmente desesperadora.

Acho que é esse o sentimento, na verdade.

Desespero.

Desespero porque ele tá me olhando faz uns cinco minutos, parece, ou mais, mas se bem que não prestei atenção muito em mais nada em volta, porque tenho medo que se eu parar e olhar em volta ele vai me esfaquear por não olhar no olho dele. E aí, se ele me esfaquear, é bem capaz das minhas tripas caírem pra fora, e aí sim eu vou vomitar com certeza. Eu vi foi num desenho, eu acho, ou num filme — deve ter sido num filme, porque desenho animado é pra criança, ne? criança não gosta de ver as tripas dos outros pra fora, ou pelo menos eu acho que não.
Eu vi, um buraco na barriga, e as tripas pra fora.

Assim como aquela mulher, pra fora, parada no ponto de ônibus.

Quê?

“Garoto, porra, moleque, olha pra mim”

Um bafo insuportável de erva doce me puxa de volta.

“… Perdão?”

“Tá surdo, porra? Te pedi dois conto pra eu comprar um cigarro ali pra mim”

“Ah, é… não, tô sem nada aqui, foi mal”

Eu até tenho, na verdade, uns quatro e uns trocadinhos pra pegar o metrô ali na estação virando a esquina e quem sabe catar um pão de queijo meio duro e queimado ali na lojinha que tem do lado da catraca se eu der a sorte da fila não estar grande demais. Mas provavelmente não é meu dia. Se fosse, eu poderia tá tomando um chá de erva doce e comendo pão de queijo agora. Mas acho que nunca mais vou querer ver erva doce na minha vida.

Ele abre a boca de novo, mas cospe erva-doce no chão. Quer dizer, acho que tentou cuspir no chão, mas ele tava claramente meio bebo, e a erva-doce pegou toda na minha blusa.

E no meio da erva doce, um dente. Nunca entendi porque falavam sobre dente de leite, mas talvez fosse legal um pra mim. Caiu um dente da minha boca outro dia, esse vai servir perfeitamente.

Se eu conseguir me acostumar com o gosto de erva-doce.

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