Igreja dos Ossos — Capítulo 1

Rafael Shintate
um retrato infiel
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8 min readFeb 4, 2021

esse é o primeiro capítulo de uma história que vem maturando faz tempo na minha cabeça, e que provavelmente vai ser mudada vinte vezes mais.

mas pela primeira vez estou satisfeito quanto a como saiu e tenho ideia de como continuar.

esse é dessa madrugada insone, do dia 04 de fevereiro de 2021.

***

Capítulo 1 — O Coliseu

“Com licença… com licença, por favor. Com licença…”

Os pedidos meio exasperados se perdiam em meio à balbúrdia da multidão.

Pudera: era um homem meio baixinho, gorducho, com uma voz inesperadamente grossa, retumbante — mas tão rouca e esfumaçada que não se sobressairia nem a um pintassilgo que cantasse baixinho ao seu lado, quanto mais à enlouquecida e enlouquecedora bagunça que se formara na rua em frente ao Coliseu.

Como de costume, tinha-se montado uma feira gigantesca que cobria toda a praça central. Os eventos de todo Junho sempre atraíam pessoas até de outros centros urbanos, que faziam as malas e vinham aos montes se amontoarem nas arquibancadas — os mais ricos, de terno branco de linho, como era o costume que se montassem os empresários e industrialistas, normalmente vinham já armados com uma pasta cheia de ingressos, para mulher e filhos ou as moçoilas que decidissem permitir que os acompanhassem na noite especial, conseguida ou pelos contatos ou por mercados e negócios menos lícitos.

Já os mais pobres, esses sim eram responsáveis por toda aquela baderna. Vinham meio maltrapilhos, não poderia ser diferente. Se atiravam nas caçambas (raça em extinção na Capital) em busca de uma calça que fosse pouco rasgada o suficiente para não serem barrados sem o traje mínimo, e, com a mais barata camisa de pano de chão que pudessem achar, se arriscavam na Feira com o cambista que gritasse mais alto ou fosse mais oferecido, cheirando cegamente a oportunidade de quem sabe assistir, ao vivo, a um Julgamento, para então se gabarem para amigos e família no cortiço ou esgoto que fosse que tivessem saído até que os maus hábitos decorrentes daquela gente os ceifassem, como acontecia com todos.

Era o que sabia o gorducho, pelo menos, era o que lhe haviam contado. Seu patrão, afinal — era franqueado de uma loja dessas que tem duas a cada três esquinas, que vendia parafusos especiais por um preço bacana! — era um dos raros desses… “aventureiros” que tinham se arriscado, saindo dos buracos de rato que eram os Bairros vizinhos para fazer a vida na Capital, e tinham conseguido mais que uma prisão, um vício ou dois e uma passagem de ônibus contrabandeada para voltar para casa, derrotado e com os olhos vidrados por algo que nunca mais iam conseguir. Não, seu chefe tinha conseguido enriquecer, e era por isso que, como prêmio por ser o melhor franqueado por quatro anos seguidos — tinha números extraordinários, chegando a vender, em tempos de vacas gordas, quase 200 pacotes de parafusos especiais por dia, e mantendo mesmo na crise uma média razoável de vendas — oferecia a ele um ingresso para as arquibancadas da festa.

Quando o chefe chegava para dar sua geral na loja, dava uma ou duas vistas rápidas nas prateleiras bem organizadas, as linhas por tamanho, as colunas por material (como mandava o contrato), batia palmas umas duas ou três vezes, colocava a mão no ombro do gorducho e dizia, quase sempre: “Muito bem, muito bem. A loja está perfeita, como sempre. Você é meu melhor funcionário, o melhor franqueado! Vende muito bem, sim, muito bem… Não deve conseguir voltar para os trapos de onde veio. As periferias, você sabe, eu estive lá também… São cruéis, horríveis, mas feitas para os vagabundos e drogados que vivem por lá mesmo. O ideal é nunca voltar.”.

O gorducho nascera e provavelmente ia morrer na cidade, mas se o chefe dizia que era melhor não voltar para as periferias, então provavelmente era melhor não voltar. Não que ele tivesse oportunidade para aquilo — era muito bem estabelecido, sim. Tinha mulher, filhos, emprego. Vivia bem, não tão perto da praça quanto gostaria, mas vivia bem, com quartos suficiente para os 3 viverem meio apertados. E, claro, era prova de que vivia bem que tinha a chance… Não, o privilégio! De ir, todo Junho, ao Coliseu, ver das arquibancadas os eventos mais esperados do ano.

Era por isso que mesmo meio ofegante e um tanto manco, de ter andado tanto com um pé mais apertado e duro que o outro (seu sapato direito tinha voltado do sapateiro menor que o esquerdo, e com um tom um tanto abaixo do caramelo que tanto gostava, mas o prazo tinha sido curto demais para que ele cobrasse o sapato certo), sem nem conseguir balbuciar direito as palavras pedindo licença, e mais levando cotoveladas e empurrões para trás que propriamente conseguindo furar a massa sólida, o gorducho por vezes se empoleirava, aguçado, enchia o peito de ar como se fosse gritar e dizia, forçando a voz rouca o suficiente para que as quatro pessoas à frente dele ouvissem:

“Vocês não sabem quem eu sou? Me deixem passar!”

E então, porque usava sempre naqueles dias especiais seu terno branco — não era de linho, seu chefe tinha dito, mas parecia o suficiente para enganar — os quatro ou cinco maltrapilhos desconfiados o deixavam passar, mesmo com tamanho o suficiente para que o pegassem e atirassem dez metros para trás, porque mesmo com mais de cento e vinte mil pessoas amontoadas na praça naquela tarde (o evento começaria só às sete, mas se chegar às quatro já havia o deixado para trás, pobre o coitado que achasse que chegar na hora fosse suficiente), todos sabiam que tinham polícias o suficiente ali para prender cem mil agressores se fosse necessário.

Era o dia do Coliseu, e tudo precisava correr bem.

***

Já eram seis da tarde quando o homem enfim conseguiu andar o último dos quatrocentos e trinta e cinco metros e meio que o separavam do Coliseu quando chegara à praça duas horas e meia antes.

Tinha perdido um tanto da sua pose, ele sabia, mas ainda fez questão de passar o pequeno pente que trazia no bolso do terno sobre os poucos fios de cabelo que ainda restavam em sua careca, como se reganhasse a honra que os quilos a mais e a voz quase acabada lhe tinham tirado nas horas que passaram com aquilo.

Vendo logo à frente as catracas, com duas montanhas de homens cercando cada entrada, para impedir que os pobres coitados que tinham gastado metade de seus depósitos para vir à Capital para não conseguir ingresso entrassem correndo desesperados num monumento tão importante, sabia que seu terno branco ali só não seria suficiente.

O homem gorducho já tinha experiência das primeiras cinco vezes que fora ao Coliseu no dia mais esperado de Junho. Nos dois bolsos de trás da calça, levava dois ingressos falsos para a entrada. Durante a caminhada, sentira ambos sendo batidos, e até tentou olhar para trás para denunciar o meliante para a autoridade que certamente estaria num raio de cinco metros, mas, do alto de seu metro e sessenta e cinco, não era mais alto que uma só pessoa ao seu redor imediato.

Era só uma falta de cumprimento pequena do dever, no entanto — milhares de roubos aconteciam ali, senão pelo desespero dos que perderam tudo para não ganhar nem ver nada, pelo mal caráter que era próprio dos que vinham dos Bairros vizinhos. Não satisfeitos em serem incapazes de fazerem algo de útil de sua vida (nem que fosse vender parafusos especiais — que raio significava aquilo, nem o próprio gorducho sabia), também tinham como objetivo de vida estragar a utilidade dos outros. Às vezes, quando batia a raiva, ele concordava com o chefe: não faria falta se tacassem fogo naqueles buracos de rato.

Mas pouco importava, porque não ia passar a vergonha de chegar às catracas sem os ingressos como passara no primeiro ano, depois de ser furtado com mão leve sem nem perceber. Guardara seu ingresso muito bem num bolso que ele mesmo (com pequena ajuda de sua esposa) costurara de forma três vezes reforçada, fechado com tanto botão e velcro, no lado interno do paletó.

“Boa noite, meus caros senhores”.

O gorducho se aproximou da catraca meio guardando o ingresso entre as mãos, como se temesse que alguém ainda aparecesse para tirá-lo dele nos momentos mais cruciais da entrada ao Coliseu.

“Cadê o ingresso.”

Ah, sim, poucas palavras, como sempre fora. O gorducho tremeu. Aquele brutamonte jamais seria mais útil do que naquele momento; de resto, seria sempre um gigante desajeitado cuja função é só ser uma parede viva nos momentos em que só paredes mortas não serviam. Quem era ele para falar com ele daquela forma? Mas respirou fundo — não queria passar vergonha, afinal, era o representante das Lojas de Parafusos Especiais no Coliseu — e entregou o ingresso sem titubear.

“Esse não é o seu nome” o brutamontes comentou, de forma bastante didática.

“Não, de fato não, meu bom senhor. O nome é do meu chefe. Eu sou…”

“Arthur Schwerck já entrou no Coliseu. O relógio diz.”

“Sim, é verdade. Mas me escute…”

Droga, aquilo de novo? Seu chefe não colocara seu nome no ingresso. Aquilo tinha acontecido ano retrasado, e ano passado ele insistira por duas semanas antes para que o nome que constasse do ingresso fosse seu; mas tinha esquecido de o fazer esse ano. Será que seria barrado pela terceira vez em cinco, depois de todo aquele sofrimento, suado e calorento, no meio de uma multidão por horas?

“Qual o seu nome?”

“P-… Pedro Rocha, meu bom senhor.”

“P- Pedro?”

O segurança esboçou um sorriso. Maldito, dez vezes malditos. Checou brevemente o crachá, guardou o número escrito na cabeça, e prometeu a si mesmo denunciá-lo por danos morais quando chegasse de volta em casa. Talvez o visse no próximo evento de Junho, no Julgamento, ele pensou, como um daqueles eventos tão risíveis e desimportantes que ninguém nem sequer lembra que aconteceu. Nem ele lembrava, se alguém que denunciara tinha sido julgado.

“Pedro. Pedro Rocha.” O gorducho suspirou fundo, porque tinha vergonha de se identificar como um qualquer daquela massa vagabunda. Mas sabia que havia de haver mais de mil Pedros Rochas na Capital naquele momento, e que, se seu nome estivesse no sistema, seria por seu ID, não porque se chamava Pedro Rocha, mesmo que fosse o melhor deles.

“17-S27–43–8A” disse baixinho.

O silêncio não deve ter durado mais de cinco segundos, enquanto o relógio do segurança computava o código de identificação citado (e demorava para carregar porque a tecnologia precária já engasgaria sozinha, quanto mais com centenas de seguranças em torno dos quilômetros de diâmetro do Coliseu usando a mesma rede), mas o nervoso do gorducho — Pedro Rocha — o medo de passar vergonha no evento mais importante do ano, fez com que parecessem mais horas do que as que havia passado se esmagando entre periféricos e outros mil tipinhos na rua e implorando por passagem.

Mas, eventualmente, o sorriso do segurança se desfez.

“Ah, sim, Pedro Rocha. Convidado… “de honra” do Senhor Arthur Schwerk. Liberado.”

Aliviado, o gorducho se inclinou levemente em uma saudação, demorando mais até do que deveria (mas precisava, e como precisava, se deliciar com aquela sensação de dever cumprido), se empoleirou de novo, depois de se desmanchar, tenso, na frente da montanha de gente, passou a mão nos fios grisalhos e agradeceu.

Então, pegou novamente o ingresso, o enfiou no bolso detrás da calça, correndo, com certeza o amassando todo naquele espaço apertado, e pôs-se a correr pelos gigantescos corredores do Coliseu até que chegasse à sua fileira na arquibancada.

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