Noite em Londres

Rafael Shintate
um retrato infiel
Published in
3 min readJan 13, 2021

este é de uma serie de 2 textos que eu fiz quando tentei seguir um guia de inktober só que com textos e acabei desistindo.
de outubro/2020
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Era uma noite de sábado de outono — embora o inverno já batesse à porta — e o Frio mais perfeito que Londres veria por aquelas temporadas, tinha certeza.

Era um Frio que, caminhando junto aos uivos do Vento, levava pequeninos flocos de neve por toda a cidade, de forma que as luzes que saía dos postes das avenidas refletiam em infinitas pequenas estrelinhas brevemente rentes ao asfalto. O céu que a cidade há muito não via (e que, afinal, ele não conhecia) se recriava mesmo que só por breves sonhos de uma cidade adormecida.

E dormia a metrópole porque era um Frio gélido o bastante para que os altos homens encartolados e as esguias donzelas naqueles largos vestidos se recolhessem em suas casas, por demais assolados pela brisa cortante para se aventurarem nas cantinas e restaurantes que se alinhavam, organizados, pelo centro da cidade — mas ainda suave o suficiente para que, dentro de suas tocas, escolhessem repousar à frente das gigantes lareiras para aproveitar aquele prazer intrínseco ao inverno que não maltrata de poder se aquecer tranquilamente.

E mesmo as ruas, entre os pobretões e os pedintes que se alojavam amontoados em cada esquina aqueciam-se como podiam, entre cobertas de lã grossas, mas furadas e sujas, e os mais sortudos, rodeados em torno de latões incandescentes, descansavam sob o alívio do calor num dia; entre os ratos e ratazanas que num dia como aquele (e para descanso dele, afinal) sequer se aventuravam para fora dos esgotos, cujo calor e odor recompensavam frente ao frio cortante e o aroma de lixo queimado que ocupava as ruas; e entre as crianças que, com casacos talvez grandes demais e toucas tão retalhadas que poderiam (talvez até pudessem de fato) serem recortes de colchas, rodopiavam lentamente, brincando com os flocos de neve menos iluminados pelas ruelas sem lamparinas — mesmo essas ruas também descansavam, senão adormecidas.

E, mais que tudo, era a noite dele, que, da casa de seu patrão, escolhera ao sentir o Vento chamá-lo uivando aquela Noite como sua. Pois era a noite em que seu amigo uivava, e não os cães; a noite em que o Frio o levaria a novos ares; a noite em que ninguém mais senão o Vento, a Noite e o Frio estariam ao seu lado.

Seus eternos companheiros, sem desgastes.

E de cima, deitado equilibrado — com maestria, é claro — sobre uma das vigas da ponte, ele observava.

Se a cidade que não dormia jamais era dos encartolados nas manhãs, em todas as noites era daqueles que ocupavam as ruas. Dos pobres e dos pedintes, dos mendigos e das prostitutas, e também dos bêbados.

Mas aquela Noite era dos equilibristas.

O Gato lambeu as patas, observou de cima — intocável, inatingível, onipotente — a selva dormindo e o reflexo urbano de um céu que jamais viria, foi beijado pelo Vento e o Frio, seu namorado, e, sobre a Noite, sua amante, adormeceu.

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