O Ginasta

Rafael Shintate
um retrato infiel
Published in
3 min readJan 13, 2021

este é o segundo texto da minha falha serie de inktober.
de outubro/2020.

Suas mãos já estavam úmidas de suor.

O homem passou o ombro, talvez com força demais — ou talvez não, pois não reagiu, se foi o caso — nos olhos para tentar limpar o suor ardido que ali se acumulava; mas os braços, também acalorados, tensos e enrijecidos, só fizeram doer mais.

O som à sua volta era ensurdecedor. Era um misto de ânsia e medo, alegria e espanto, maravilha e assombro, mas não aquele para o qual ele tinha sido preparado: era uma mistura gritada, inquieta, aguda, que chamava a Alma e a revirava, que contagiava o ambiente com uma certa ansiedade pelo que viria a seguir. Talvez não da ansiedade que consome, para os que tinham o privilégio de ter pagado um ingresso caro demais e se sentarem sob aquela lona grossa, que escondia as luzes do Sol escaldante das três da tarde em que estavam e fingir estar num espetáculo obscuro, de mágicas, sobrenatural, e seres superpoderosos.

Queria ele ser um ser mágico, sobrenatural, ou superpoderoso.

Não, a ansiedade para ele, observando o show de cima, vendo os outros: alguns, seus melhores amigos, os demais que ele nem sequer havia encontrado nos dias de ensaio (quem eram? Como chegaram ali? Por que estavam…?); era daquelas que te toma de assalto e congela, sem medo de assustar, sem se preocupar em chegar de fininho. Era a de ver naquela terra batida um cemitério de elefantes.

E embora as luzes e a areia solta que subia até tão alto no seu palanque esfumaçasse e enganasse, e, mais que qualquer outra coisa, o escondesse: ali, era quase como um pássaro que observa distante, em uma posição que os homens de monóculos e bigodes volumosos e bem penteados que traziam os pequenos para vê-los sofrer talvez pagariam para ver. E pagariam o dobro, o triplo, o quádruplo, porque dali seriam apenas espectadores de luxo, vendo homens se arriscarem apenas para arrancar um suspiro de falso alívio ou uma risada calorosa de sua face.

Ele não era espectador de luxo nenhum.

Não. O deserto — tinha, aliás, certeza de que era um deserto: o calor insuportável, abafado, o suor que o cobria da cabeça aos pés, o desespero que tomava conta do seu corpo ao se afrontar com a própria Morte — que estava sob ele, que o encarava com um desdém e desprezo de quem fala “Vem! Encara teu destino…”, seria sua própria cova.

E que é o homem que passa seus últimos momentos encarando a Morte, senão um pobre miserável?

Ele fechou os olhos com força, procurando um escuro tão antigo e poderoso e calmante quanto a própria Morte era.

Mas o que encontrou foi apenas vermelho.

A luz forte dos holofotes focavam nele, e nele somente.

A estrela do show.

O momento principal.

O homem, que naquele momento não era homem nenhum, estampou um sorriso confiante de orelha a orelha, tentou limpar as mãos úmidas de suor (naquele momento, eram praticamente um pano molhado) no collant de látex — mas apenas tentou — e deu três passos para trás.

Naquela hora, não. Não era homem, não era Homem.

Era o Ginasta, apenas.

E o Ginasta nada teme. Nem a própria Morte.

Com as mãos do homem ainda suadas, O Ginasta correu, pegou na argola, e saltou.

Para a cova, ou para a glória.

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