Silêncio

Rafael Shintate
um retrato infiel
Published in
4 min readDec 14, 2020

nada disso é real (de verdade), mas o silêncio é.
este é de uma tarde, meio ensolarada, meio vagarosa, num 13 de dezembro.

Meu pai era um cantor péssimo.

Sempre foi, na verdade.

O que era muito estranho, porque como minha mãe me falava sempre que eu perguntava — e eu perguntava muito! — sobre como eles tinham se conhecido, ela sempre me respondia, passando a mão sobre o cabelo, a outra brincando de leve sobre a aliança dourada, e olhando pra cima, como se para outra época, e não para o nosso ventilador de teto:

“Seu pai cantava numa banda”.

E por vezes, ficava por isso.

Noutras, ela suspirava de leve e dizia, rememorando tempos passados:

“Ele era bom no que fazia”

Ora, eu sabia que não era.

Eu ouvia papai cantalorar todos os dias, desde a hora em que acordava, quando por vezes ficava assoviando alguma melodia de Tom Jobim ou de Vinícius, ou, nos dias chuvosos ou nublados ou — como ele chamava sempre -tristes, alguma lenta de Tim Maia ou de Elis ou de Chico, até a hora em que dormia, quando podia estar batucando Sepultura ou Metallica, em dias ruins, ou nos dias bons sussurrando um jazz enquanto víamos tevê.

Eu sabia que ele era péssimo no que fazia.

Os amigos da minha irmã riam um pouco, mas a gente sempre dava de ombros: era nossa própria trilha sonora, uma música que estava sempre conosco, mesmo que fosse um disco um tanto riscado, meio velho.

E se eu falava isso para mamãe, ela simplesmente bagunçava meu cabelo, dava dois tapinhas nas minhas costas e cantarolava, uma melodia doce e intoxicante, me levando para longe, para fora.

Eu pensava:

“Ora, mamãe, faria muito mais sentido você ser a trovadora e ele o reles poeta.”

E papai, quando ouvia a conversa — e ele quase sempre ouvia, porque mesmo cantando o dia todo e todo meio avoado, ele tinha os ouvidos agudos de um predador complexo (e tinha de ter), ele ria alto, e alto! Naquela voz meio arranhada dele, e dizia,

“Querida, não faça o menino rir. Se eu fosse bom no que fazia, a banda tinha passado de bares vazios e uns poucos velhos bêbados como plateia.”

“E eu, não?”

E ele, então, cantarolava uma música sobre o Amor ou sobre alegria.

Acho que nunca escutei meu pai dizendo ‘eu te amo’ de outro jeito.

Acho que nunca vou achar um ‘eu te amo’ tão lindo quanto aquilo era.

***

Papai nunca foi um bom cantor.

Então foi um tanto irônico — quase tanto quanto desesperador — quando a doença pegou ele primeiro na garganta.

Eu tinha pouco mais que 15 anos, então já tinha vivido um bocado.

Mas nunca tinha visto a casa em silêncio.

Os médicos diziam que o câncer não devia se espalhar muito.

Que já tinha estacionado, e que logo mais papai ia poder voltar a cantarolar pela casa.

Mamãe já não tinha certeza.

No começo, papai ainda tentava murmurar alguma melodia para ela, nem que fossem por alguns segundos antes que irrompesse numa tosse gutural e rouca e fraca e débil. Mas aqueles poucos momentos ecoavam pela casa, quase como se o silêncio se recusasse a voltar e um leve eco eterno corresse entre os corredores.

Os poucos versos de Caetano por vezes se estendiam durante a manhã toda, e à tarde, quando voltava da quimioterapia, ou à noite, se estivesse muito cansado, alguma canção terna do Renato Russo amassava nossos travesseiros antes de dormir.

Com o tempo, a nossa trilha foi ficando cada vez mais baixa e débil.

Até se tornarem uma voz rouca só, que quase nem podíamos escutar, mas imaginávamos poder — queríamos poder! — e eu pensava ouvir Blitz todos os dias, como se papai estivesse feliz e dançando, e minha irmã dizia que eu estava errado, que papai cantarolava era Chorão e Skank, e ela podia pular e andar de skate no quintal com a música dos seus sonhos.

(E à noite, às vezes, nós dois o acompanhávamos num trieto de Vento no Litoral ou Aquarela e deixávamos o peito se soltar)

Mas no quarto de mamãe, tocava música ambiente.

Chuva no concreto, chuva na floresta.

Chuva o tempo todo.

***

Hoje acho que entendo o que mamãe dizia sobre papai ser excelente no que fazia.

Meu pai era um péssimo cantor.

Isso é inegável.

Ele nunca foi Elvis, nunca foi Elis, nunca foi Chico e nunca foi Caetano.

Ele nunca foi nada que sua voz não o permitisse ser, tanto é que foi só mesmo engenheiro e pai, desde quando o conheci até quando não mais pôde.

Hoje até ela admite isso, mesmo que ainda girando a aliança no dedo, olhando pra cima e rindo de leve.

No silêncio da casa.

Mas ele nos dava o tom da Vida.

De uma vida mais alegre, ou mais triste, ou mais nervosa, quando ela era.

E ela era, sempre, e continua sendo, porque nem todos os dias são ensolarados, e nem todas as noites pedem um jazz e um vinho na lareira

Papai me ensinou a cantar quando o tempo pede;

E conforme o tempo pede.

E às vezes, quando a chuva bate lá fora e não ouvimos Tim Maia nem Elis nem Chico, só mesmo as lágrimas caindo suaves na janela, eu e mamãe e minha irmã sabemos, e ouvimos todos.

O silêncio canta love songs pra gente.

E tudo fica bem.

--

--