Quem se define, se liberta

Gabi Bertoni
Uma vida heliotrópica
8 min readFeb 2, 2024
Foto: Pexels

Pra discorrer sobre o tema que quero abordar nesse textinho aqui, preciso compartilhar um fato pertinente sobre Gael: ele ainda não é uma criança que tem um sono o qual posso classificar como satisfatório (para mim, no caso). Quando digo que ele dorme meio mal, me refiro ao ponto que, de seus 30 meses de vida, poucas foram as noites que ele dormiu 7 ou 8 horas direto, por um longo período seguido.

Desde o seu nascimento, passei por algumas questões um pouco árduas até aqui, como o início da mamentação, sequência de gripes e resfriados pós início na escolinha, entre outras, mas o sono, de longe, é o que mais me tira do prumo, como dizem. Embora eu nunca tenha sido uma pessoa que gostasse de dormir, pude atestar que longos períodos com noites sequenciais mal dormidas atrapalham, sim, o funcionamento da cabeça de uma pobre mãe.

Pra exemplificar o que quero dizer, compartilho uma situação recente, de dias atrás, com todo o contexto necessário — senta que lá vem história.

A amamentação sempre foi uma grande prioridade do meu maternar. Antes mesmo de ele nascer, eu já havia internalizado a questão de que faria o que fosse necessário para que ela desse certo, afinal, sabemos que não é algo tão instintivo quanto parece. E ela deu — e segue dando. Tivemos o aleitamento exclusivo e em livre demanda até seus seis meses de vida, após introdução alimentar seguimos com o open de tetê e, perto de ele completar dois anos, foi quando as duas temáticas começaram a se cruzar de maneira desfavorável à minha saúde mental rs. Lendo centenas de relatos na internet e em grupos de mães no WhatsApp, passei a crer que a única coisa que faria com que Gael dormisse a noite toda seria o desmame noturno, porque, com a cama compartilha e a livre demanda, ele, de fato, acordava algumas vezes para mamar, ainda que já tivesse quase doisanos de idade. Porém, eu queria muito que a livre demanda seguisse até seus 24 meses de vida, pautada muito pela importância que os primeiros 1000 dias de vida de um ser humano tem. Então persisti.

Perto de seu aniversário de dois anos, começamos o desmame noturno e, para nossa surpresa, foi mais simples do que imaginei: quatro noites e ele já não pedia mais o tetê durante as madrugadas. Viva! Por ter optado seguir da maneira mais humana e respeitosa possível, pensei que fosse demorar algumas semanas, mas, graças a Deus, estava engada. Enfim, comecei a ter um pingo de dignidade e os quatro ou cinco despertares noturnos reduziram para dois, um ou nenhum em algumas noites.

Há pouco mais de um mês, mais ou menos, ele voltou a acordar diversas vezes. Já pensei em mil explicações para isso. Mudança na rotina por conta das férias escolares, assistindo mais TV do que está acostumado (limitamos a exposição à tela por aqui, então ela só vê televisão pela manhã), comendo mais doce do que devia (em períodos normais, ele quase nunca come doce), pesadelo, terror noturno, saltos e picos de desenvolvimento, calor, frio, dente nascendo, dor… tudo já passou pela minha cabeça. E é um despertar onde ele acorda chamando exclusivamente por mim (o papai poucas vezes serve para ele nesse momento, para a tristeza da mamãe). Ontem mesmo, perguntei pra ele: filho, porque você tem acordado chorando durante a noite? E ele, com uma cara de como se a resposta fosse óbvia, me respondeu: “porque eu quero a mamãe”, com um sorrisinho ao final.

Em alguma madrugada das primeiras semanas de janeiro, a qual não vou lembrar exatamente o dia, ele chegou a despertar seis vezes, sim, seis vezes, e, nesse dia, eu quase pirei. Entenda, Gael é uma criança que gosta de acordar cedo. São 6h da manhã e ele está vivão e vivendo, pronto para tudo. Puxou a mamãe — infelizmente, rs. E, nesse dia, assim que ele acordou, deixei ele sentado na sala assistindo TV, comendo suas uvas e chamei o papai pra ficar com ele. Fui para meu quarto, tranquei a porta na tentativa de conseguir um mísero descanso, já que ele alcança a maçaneta, e, em menos de cinco minutos, ouço ele perguntando na sala: cadê a mamãe? Nesse mesmo segundo me deu um pequeno desespero e comecei a chorar. O estado que fica nossa cabeça sob uma realidade sem descanso é inexplicável.

Toc, toc, toc…

“Mamãe, vem pra sala… Mamãe?”

“Filho, a mamãe está tentando dormir só um pouquinho, tá bom? Senta lá no sofá com o papai.”

Choro incessante.

Não pensei duas vezes, peguei meu travesseiro, um lençol e desci pra dormir no carro. Sim, desci pra dormir no carro. Isso era quase 7h da manhã. Rodrigo fez uma cara de ué, Gael perguntou onde eu ia e eu só disse que ia no carro rapidinho. E ali no carro, depois de ter chorado mais um pouco em um misto de culpa, impotência, cansaço e gratidão (jamais saberia explicar esse mix de sentimentos), consegui dormir por duas horas seguidas, feito raro nos últimos tempos. Fui acordada pelo nosso vizinho de vaga, que queria puxar nosso carro pra sair com o dele e ainda tive que me justificar: “risos, risos, o que os filhos não fazem com a gente não é, risos. Pode deixar que tiro aqui pra você.” Com certeza ele não entendeu nada. Puxei o carro, peguei minhas coisas e subi. Acredite se quiser, estava renovada.

Pois bem, expus aqui uma das muitas fases e momentos desafiadores que a maternidade me trouxe para falar sobre um post que vi na internet há duas semanas em um desses perfis de paternidade respeitosa e coisa e tal. A frase na imagem diz: “E se eu falasse: ‘amo minha esposa, mas odeio estar casado’, o que você pensaria?”, enquanto a legenda discorre sobre o fato de que muitas mães nos últimos tempos começaram a desromantizar a maternidade, muitas vezes proferindo frases como “amo meu filho, mas odeio ser mãe”.

Entendo que a comparação que ele fez foi infeliz no sentido de que é impossível você comparar a demanda e o tipo de relacionamento que há com um marido ou uma esposa em relação a um ser humano que você precisa manter vivo, mas, do ponto de vista do propósito, do papel desempenhado e da missão de vida, a comparação faz, sim, sentido.

Tem uma frase que gosto muito de Santa Teresa D’Ávila que diz: é justo que muito custe o que muito vale. Autoexplicativa, não? Tudo aquilo que tem um valor colossal em nossas vidas, o “preço” que pagamos é exorbitante na mesma proporção. E isso vale pra casamento, maternidade, paternidade, emprego ou qualquer relação entre dois ou mais seres. Muito vai custar aquilo que muito for valer. Então, toda e qualquer situação que envolva amor, propósito ou compromisso, em algum momento (ou muitos momentos), ela vai ser custosa.

Entendo que centenas de milhares de mães pelo mundo podem ter sido submetidas a uma maternidade arbitrária, seja por descuido, estupro ou qualquer outro motivo. Mas, uma vez com a criança sob minha responsabilidade, é leviano eu esbrejar aos quatro cantos que odeio ser mãe, embora ame meu filho. Como você pode odiar o que se tornou, amando o motivo pelo qual se transformou no que você é? E eu sei que muitas mães — muitas mesmo — se sentem assim, a grande maioria por conta da desmedida sobrecarga que carregam sob seus ombros para cuidar de um ser humano. Porém, como Jonatan bem disse na legenda dele, é preciso curar algumas feridas internas antes de expor com orgulho para o mundo que estamos ou vivemos de saco cheio de cumprir nossos papéis.

Um vídeo com a participação da Samara Filipo em um podcast viralizou algum tempo trás com ela dizendo que não gosta da função de ser mãe. Que não gostava de acordar cedo, não gostou de encher de manchas, de pausar a carreira, de ter ficado grávida, e pelo tom enérgico durante a aspa, a lista deve ser grande. Mas, Samara, eu te pergunto: qual foi a mãe que fez tudo isso feliz, alegre e cantando? Qual mãe que gosta de trocar fralda? De passar dias e dias com filho internado? De ter os seios sangrando pra amamentar? De não ter um tempinho pra si? De passar mais de dois anos — e contando — sem conseguir dormir direito? De ter que gastar com escola? De ter que limpar xixi no chão do mercado? De ter que lidar com birra, com destempero ou surto, seja de uma criança ou de um adolescente? De tomar injeções durante todos os dias por nove meses pra manter o bebê saudável na barriga? A verdade é que ninguém gosta, Samara. Eu aposto com você que até a Virgínia tem alguma queixa a ser feita com relação à gestação/maternidade. Do alto de seu extremo privilégio, com mil babás, faxineiras, auxiliares do lar, a mãe morando junto, pai presente, jato particular, mansões, procedimentos estéticos, acesso aos melhores médicos do país e todo o combo que a vida dela carrega, com certeza ela também tem seus pontos de insatisfação e frustração.

E o que quero dizer aqui é que o ponto chave de toda essa questão está escondida no grande propósito que há por trás da maternidade. Planejada ou não, ela envolve uma realidade que não temos como fugir. Um, porque somos livres para fazermos o que bem quisermos e dois, porque parte dessa liberdade envolve aceitar as consequências que virão, reclamando delas ou não.

Muito anos atrás li uma frase em um fotolog (sim, muitos anos atrás MESMO rs) de alguma pessoa desconhecida que dizia: quem se define, se limita. E isso nunca parou de ecoar na minha cabeça. Hoje, mais de 15 anos depois, eu finalmente entendi que ela não faz o menor sentido, afinal, quem se define, se liberta! E é muito pertinente esse ponto, não somente para essa discussão, mas para muitas outras, porque, a partir do momento que eu entendo quem eu sou e para que estou aqui no mundo, toda falha que possa existir na compreensão e aceitação do meu grande propósito de vida, cai por terra.

Posso ter tido uma gestação indesejada, repleta de complicações, um puerpério dificílimo, nenhuma rede de apoio, julgamentos, provações para educar, filhos atípicos ou posso até simplesmente não ter conseguido ou querido ter filhos. Tudo isso faz parte de quem eu nasci pra ser. E se eu nasci pra ser isso, isso é tudo o que eu tenho. E é em cima dessa realidade que eu vou trabalhar a minha pobre cabecinha, seja para simplesmente aceitar quem sou ou o que a minha vida é. E qualquer pessoa que esteja em sofrimento constante para lidar com a realidade que tem debaixo do próprio nariz, infelizmente essa pessoa ainda não descobriu ou aceitou o que veio fazer aqui.

Está tudo bem reclamar do que não gosta, chorar de cansaço e lembrar com carinho da vida que tive antes de me tornar mãe. Mas a partir do momento que a ficha da minha grande vocação de vida cai, não sobra muito tempo pra jogar luz sobre esses pontos, afinal, estou ocupada demais enxergando o copo meio cheio, enquanto exerço a melhor função que eu poderia exercer no mundo: a que eu nasci pra ser.

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