O dia que Gael nasceu

Gabi Bertoni
Uma vida heliotrópica
10 min readNov 16, 2021
Uma das últimas fotos que tirei da barriga

A terceira segunda-feira de julho começou diferente para mim. Exatamente à 00h11 meu corpo deu o primeiro sinal de que Gael estava prestes a iniciar seu caminho barriga afora. Sentindo na pele o poder que a força da natureza tem, pouco mais de 20 horas depois eu finalmente dei o primeiro passo rumo à nova realidade que me esperava do outro lado daquele parto: a maternidade.

Ao longo dos últimos anos dediquei boa parte do meu tempo livre a assistir ou ler relatos de partos. Não somente porque a maternidade tenha sempre sido um grande querer, mas também por achar fascinante o processo de uma vida dando vida a outra vida. Ao me ver grávida, naturalmente mergulhei de cabeça nesse universo e fui em busca de todo e qualquer tipo de informação de qualidade que eu pudesse ter acesso. Se a ignorância escraviza e o conhecimento liberta, tudo o que eu queria era me desprender ao máximo de um sistema que encabresta gestantes, muitas vezes omitindo informações importantes acerca do assunto.

A madrugada daquele dia se transformou em um enorme revezamento entre tentativas de pegar no sono, fotos do tampão sendo enviadas para nossa querida doula, líquido “vazando” e contrações leves não ritmadas. Aquele cenário — aparentemente sereno, porém cheio de minuciosidades importantíssimas — nos colocava dentro da primeira fase de nosso tão esperado trabalho de parto, os pródromos.

Daquele momento em diante eu sabia exatamente o que esperar. Embora a conjuntura pudesse carregar inúmeras possibilidades, afinal, há uma singularidade em cada nascimento, lutei para que a insegurança não me paralisasse, fixando em um lugar muito acessível da minha mente uma frase que me acompanhou até o último segundo precedente ao primeiro chorinho do Gael: “Meu corpo sabe parir”.

Manhã adentro e as contrações iam ficando cada vez mais intensas. Enquanto tentava viver minha vida “normalmente”, risos, entre um diálogo e outro com o Rodrigo, que comandava o aplicativo contador de contrações, eu parava, debruçava no encosto da cadeira, focava na respiração e esperava. “Pronto, passou.” Eu ainda não sabia, mas já havia encontrado a posição mais confortável para suportar cada contração. Assim seguimos até às 14h e pouco, momento em que Rodrigo notou o padrão no ritmo das contrações e mandou mensagem para a doula vir ao nosso encontro.

Mil milhões. Talvez esse seja o número exato de benefícios que um parto vaginal proporciona aos envolvidos e todos os livros, filmes, séries, documentários, vídeos, cursos e grupos de apoio que tive acesso, o saldo para mim era sempre um só: a natureza em ação. E, te digo, poucas coisas na vida me fascinam tanto quanto atestar a perfeição das coisas de Deus. “Eu preciso permitir que esse evento aconteça da maneira mais orgânica possível para sentir na pele (literalmente) a excelência que há em tudo que vem d’Ele.” E foi assim que, plenamente consciente de que tudo poderia fugir do planejado, decidi optar por um parto natural.

O relógio marcava 15h e alguma coisa quando entramos no Uber rumo ao São Luiz. Coincidências da vida, a motorista era uma mulher. “Está para nascer?”, ela perguntou. Não lembro o que respondemos. Na verdade, lembro de pouca coisa durante o caminho até a maternidade. Com uma toalha de banho entre as pernas, me preocupei pelos minutos que eu teria que ficar sentada, imóvel, durante as contrações — em pé era mais fácil de suportá-las. Ao meu lado, Jheniffer massageava minha lombar, enquanto eu pressionava os ombros do Rodrigo que estava no banco da frente.

Chegamos. Contando ainda com a lucidez na maior parte do tempo, eu conseguia minimamente interagir entre uma contração e outra. Abre ficha, espera ser chamada e de repente me vi numa salinha para descobrir em que pé estava a dilatação: seis centímetros. Deitada para ser examinada, ouço uma pergunta que marcou o início de uma série de micro arrependimentos envolvendo escolhas em relação à equipe. “Quem vai fazer o parto?”, questionou a enfermeira. “Eu!”, respondi, prontamente, num tom de obviedade. Demorei alguns segundos para entender que ela se referia ao profissional que acompanharia o parto, então, mentalmente, corrigi seu questionamento. ‘Quem vai assistir* ao parto, ela quis dizer.’ Pensei em corrigi-la, mas mais uma contração estava a caminho, então me limitei a apenas complementar minha resposta, seguida de uma risadinha: “Plantonista do hospital.”

Deitada na mesma maca em que havia feito os exames de toque e covid, subi para um ambiente pré-parto. Rodrigo e Jheniffer chegaram logo na sequência e então, novamente com meu time completo, me senti à vontade para dar sequência ao nosso grande show da vida.

Neocórtex, hipotálamo e hipófise. O corpo é uma marionete da mente. O cérebro, protagonista oculto de todo esse evento, promove uma verdadeira ebulição hormonal, desligando a racionalidade e transcendendo nosso lado mais primitivo. Comecei a abandonar meus pensamentos para dar voz ao meu corpo. Eu sabia que, dali em diante, a potência física daria conta de trazer Gael para os meus braços. Aquele quartinho, na penumbra, com apenas uma maca, uma bola de pilates e um banheiro, serviu de portal para o início da experiência mais maluca e transformadora de toda a minha vida.

Já completamente imersa na famigerada partolândia, silenciei tudo ao meu redor e finalmente me entreguei. A playlist que montei, que segundo o Rodrigo tocou em um looping infinito até a hora do Gael nascer, mal ouvi. Com o mundo ao meu redor emudecido, minha respiração soava como música. Meus olhos, não conseguia mantê-los abertos. Quando me esforço para lembrar de tudo, apenas flashs, sem cronologia alguma, me vêm à mente. Chuveiro, bola, massagem… Dos muitos exercícios de hypnobirthing que havia lido e praticado, somente um funcionou: visualizar meu pulmão como se ele fosse uma flor. Ao inspirar, essa flor se abria, e ao expirar, essa flor se fechava. Foi assim que consegui atravessar cada contração, abraçando aquela dor extremamente absurda, porém, sem me sentir torturada. Descobri que, apesar de intenso, o parto não precisa ser aflitivo. A dor, nesse caso, não é inerente ao sofrimento, e hoje posso testemunhar isso.

Poucas horas se passaram até que a dor se transformou em uma enorme vontade de fazer cocô. Instantes depois e me vi em uma cadeira de rodas, indo para um outro ambiente que, de longe, não era nada parecido com o que eu esperava para poder dar à luz.

Ao longo da reta final de minha gestação, montei cuidadosamente um plano de parto. Na minha cabeça, aquele documento funcionava como uma bíblia para aquele momento. ‘Qualquer médico que pegá-lo, vai saber exatamente como abordar os cuidados em relação ao meu parto, garantindo que, na medida do possível, tudo ocorra conforme o idealizado.’ Ledo engano.

Parir é um evento que leva tempo, demora. Rédeas e parto são coisas que não combinam. Não se controla um fenômeno da natureza. E eu ali, disposta a não controlar nada, despida de todo e qualquer autodomínio, esbarrei em uma médica com pressa, afoita e disposta a controlar as últimas cenas deste valoroso momento de minha vida.

Cheguei em outra sala, ainda sentada na cadeira de rodas, e, ao abrir levemente os olhos, voltei a acionar meu neocórtex — aquela parte do cérebro que deve ser desligada durante o trabalho de parto porque ela te faz raciocinar, atrapalhando os instintos que são tão necessários durante este momento.

Era uma sala extremamente iluminada, cheia de aparelhos e placas de metal penduradas no teto. ‘Que ambiente cirúrgico’, pensei, em uma fração de segundo. ‘’Vamos fazer o cardiotoco para ver se está tudo bem com bebê, deita aqui”, alguém disse. ‘Deitada, as contrações são mais doloridas. Eu não preciso fazer o cardiotoco deitada’, pensei e cheguei até a falar algo do tipo na hora, porém, quando vi, lá estava eu, deitada.

Batimentos do Gael ok e dilatação total batendo à porta. A dor havia se transformado em uma vontade maluca e involuntária de empurrar algo para fora. Quando terminamos o cardiotoco, comecei a ouvir uma vozinha lá no fundo da minha mente dizer coisas como: ‘Será que vou aguentar?’, ‘Acho que não vou dar conta’, ‘Estou exausta, será que quero uma anestesia?’. A fase de transição. Ela havia chegado.

Curiosamente — ou não — outra pequena voz, que quase passou despercebida, ressoou em algum lugar muito perdido da minha cabeça uma frase muito oportuna de São Paulo, Apóstolo, lembrando que no pior estágio do meu cansaço e de minha debilidade, eu encontraria potência.

“Mas ele me disse: “Basta-te minha graça porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força.” Portanto, prefiro gloriar-me de minhas fraquezas para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco, então é que sou forte.” (2 Cor. 12:9–10)

Daí em diante encontrei forças para seguir, porém começamos a esbarrar em alguns absurdos envolvendo meu plano de parto, evidências científicas e as falas da médica. Me ofereceu anestesia, dirigiu meus puxos e me privou de parir na posição em que eu mais me sentia confortável. Um show de horror. “Nessa posição eu não consigo fazer seu parto.” Essa frase ecoa na minha cabeça até hoje porque ela caracteriza o gosto amargo de uma grávida que passou a gestação inteira munindo-se de informação, imersa em um sistema complexo e ultrajado, pouco (ou quase nada) preocupado com a significância da ocasião. E então, a beleza da vulnerabilidade se transformou em uma armadura maçante e subversiva.

Para nossa sorte, o expulsivo durou pouco tempo.

Da maca, fui para a banqueta. Da banqueta, fiquei em pé, debruçada na maca (era a posição que me sentia mais confortável, lembra?). Logo na sequência, ouvi a barbaridade que mencionei no parágrafo acima, e então voltei para a maca, ao som de “vamos tentar aqui e se não der, a gente volta para a banqueta”. Olhei para o relógio, 20h42.

O parto humanizado, seja ele cesárea ou vaginal, sempre me chamou a atenção por dois simples motivos: gentileza e respeito. Não faria sentido não priorizar valores que considero básicos para a humanidade durante o momento mais significativo da minha vida. O mundo já é tão duro e complicado que fiz questão de dar meu máximo para que, durante a estreia de Gael fora da barriga, ele fosse acolhido da maneira mais amável possível, na intenção de que o resto de seus dias possa ser uma extensão da hora do seu nascimento.

Dia 20. Esse era meu palpite para a data de nascimento dele. Amante que sou dos números pares, ressignifiquei esse gosto, já que o momento mais significativo de minha vida esteve repleto de números ímpares.

Três forças depois, às 20h53 do dia 19 de julho de 2021, eu finalmente olhei pela primeira vez nos olhinhos da pessoa que chegou para me transformar no que nasci para ser. “Bem-vindo à vida, meu amor!” Aninhado em meu corpo, nós três nos abraçamos, como se fossemos um só. Estávamos frente a frente com o início de uma nova jornada, cara a cara com o primeiro passo da caminhada mais rica em aprendizados e evoluções que pode existir. “Estou pronta!”

Alguns instantes depois, ao ver a placenta, que nutriu meu filho durante os nove meses em que ele esteve dentro da minha barriga, penso: ‘agora, sim, acabou.’

Pelas próximas horas, Gael e eu seguimos coladinhos e assim pretendo permanecer pelo resto de meus dias aqui na Terra. Antes, um cordão que pulsa sangue nos mantinha conectados. Agora, o elo que nos une não é físico e nem desse mundo. Meu coração inteirinho está ligado ao dele. Para sempre.

Ao fazer um balanço, sinto que o saldo do meu parto foi positivo, afinal de contas, eu queria um parto natural e tive um parto natural. Foram 21 horas de bolsa rota, cerca de 6 horas de trabalho de parto ativo e pouco menos de uma hora de expulsivo. Porém, olhando em retrospecto noto um conjunto de detalhes que poderiam ter acontecido de outra maneira, me deparando com o famoso ‘E Se…’

“Se não fosse a pressa da médica, será que ele teria nascido nesse mesmo horário? Se eu tivesse ficado na posição que me sentia mais confortável, ainda assim teria tido uma laceração de terceiro grau? Será que outras percepções teriam me ocorrido?”

Foi um privilégio vivenciar tamanha intensidade e potência. Nós, mulheres, somos um portal e quão mágico é poder atestar isso. Estudei, acreditei, confiei e lutei. Me entreguei, me permiti, me libertei e me transformei. Não fosse pela coincidência de ter topado com aquela médica, muita coisa poderia ter sido diferente. Mas, no fundo, as coisas sempre podem acontecer de outras maneiras. Apertei o botão da resiliência e segui.

Quem sabe a próxima cria não nasça no meio do mato, risos.

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