Cadê as pipas no céu do centro paulistano?

Leonardo Pereira
Uma Pera
Published in
3 min readMar 12, 2015

Eu queria ter condições de manter um estabelecimento no centro de São Paulo só pra colocar na frente um banco liso, preferencialmente de madeira bem tratada, e incluir um aviso assim: “Permitido passar a noite aqui.”

Vai fazer dois anos que eu moro aqui e ainda não consegui me acostumar à frieza deste lugar. Na Vila das Mercês, onde eu morava, a gente até decorava o nome dos moradores de rua, de tão poucos, e sempre ficava sabendo quando acontecia alguma coisa grave com eles. Aqui, não; são muitos e, como já se transformaram em parte da paisagem, a gente simplesmente ignora a existência dessas pessoas.

Fora que pra muita gente o mendigo (não gosto muito dessa palavra) do centro é, antes de mais nada, um bandido. Embora nem todo mundo pense assim, é notável o asco e o medo que uma parte sente quando passa por eles — o que até soa contraditório porque eu acabei de escrever que a gente ignora o morador de rua; na verdade, a gente só os ignora enquanto “pessoas”.

Claro, isso porque tem quem realmente acredite que o fulano resolveu que seria muito mais agradável passar os dias dormindo na rua (inclusive com chuva), sem lugar pra comer, transar, mijar, cagar… Já pensou como deve ser horrível não ter um lugar maneiro pra dar uma cagada? Pois eu já vi gente ser obrigada a descarregar na rua, entre carros estacionados, nos cantinhos, na Praça da República.

Agora imagine o que é ser mulher nessa situação.

Durante os dias da semana, a loucura das buzinas, os engarrafamentos ininterruptos, a gritaria dos vendedores, as confusões normais da região agem para esconder ainda mais essa galera. Você consegue notar os rastros, se prestar atenção: por exemplo, procure não pisar em caixas abertas aqui, porque aquele pedaço de papelão jogado na calçada pode ser a cama de alguém.

À noite, aliás, eles aparecem como que do nada e, às vezes, precisam brigar por lugares não tão ruins pra dormir. Isso porque muitos estabelecimentos colocam algum tipo de dispositivo na entrada pra impedir que alguém se deite ali durante a noite, coisas como lanças e pontas. É desumano.

Nessas horas, os moradores de rua geralmente estão famintos demais e cansados demais da humilhação de ter de mexer no lixo ou implorar pelas sobras dos outros pra estar de bom humor. Até porque basta um deles se aproximar da lanchonete na hora do almoço e os garçons correm pra disparar aqueles despachos que deixam uns clientes sem graça, outros aliviados.

As drogas que chegam a parte deles não estão aí pra deixá-los bem-loucados, como acontece com quem fuma uma maconhazinha ou bebe uma cervejinha, cheira uma cocainazinha. Amigo, crack, benzina, cola e pinga são coisas baratas que preenchem aquele vazio provocado por um buraco eternizado no seu estômago. E, pro morador de rua ter chegado ao ponto de andar gritando e gesticulando sozinho, pode ter certeza de que ele já passou por muita, mas muita coisa nessa vida.

Mas o pior de tudo isso, pra mim, são as crianças. Não que os adultos estejam em vantagem, mas é que me dói perceber que aquele pequeno do farol, que tá roubando gente no Viaduto do Chá ou na região do Largo do Paissandú pra comprar droga ou comida, nunca soube o que é ser criança de verdade. E só tem chance de ser “alguém” quando a mídia aparece pra rotulá-lo de menor.

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A Vila das Mercês fica perto da Vila Brasilina, onde morava (ou mora, não sei) um cara chamado Alê. Alê era (ou é) dono do Alê Pipas, o lugar para onde a molecada de toda a região migrava nas épocas de férias. O cara vendia linha, pipas de uma infinidade de tamanhos, tipos, cores e estampas; rabiolas prontas ou soltas… tinha até uma máquina que enrolava a linha nas latas, era o paraíso.

Aqui no centro ninguém empina pipa. Tá cheio de criança na região, mas elas não sabem o que é estar de férias.

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