Crônica de uma revolução

Leonardo Pereira
Uma Pera
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7 min readJul 27, 2017

— Era necessário, né? Não tinha jeito.

— Certeza! A gente tinha que fazer alguma coisa porque o país tava fora de controle. Se não fosse pelo povo que foi à rua, ainda estaríamos nas mãos daqueles comunistas.

— Eu lembro que o Rafa era pequeno na época e não entendia muito bem por que a gente tinha que ficar o tempo todo na Paulista de verde e amarelo sendo que nem era tempo de Copa — ria. — No começo eu até explicava direitinho: "Filho, um dia você vai olhar pra trás e entender que a gente tá indo pra rua pra fazer história!" Depois de um tempo ele se acostumou, vestia a roupinha do futebol sozinho. Aí começou a estranhar quando aquilo tudo terminou.

— Hahaha! Foi assim lá em casa também, os dois meninos ficaram encucados quando finalmente aconteceu a Retomada e não tinha mais que ir na Paulista. Depois o menor ficou tão chato com essa história que tive que dar uns tapas pra tomar jeito. Não sei qual era a dificuldade de entender que a Paulista não é lugar pra brincar, aquilo lá é lugar de carro, a gente só pegou emprestado por um tempo porque precisava gritar. Precisava mostrar que é o povo quem manda nesse país.

— Falando nisso, Régis, e a Paulinha, nunca mais deu notícia mesmo?

— Nada dessa desgrama, Luizão, aquela lá só foi desgosto mesmo. Ce vê, eu fiz o que um pai tinha que fazer. Não tava só protegendo as mulher de casa, tava protegendo o Brasil! Ela já era mais mocinha e sempre enchia o saco quando tinha protesto, falava que a gente era um bando de golpista. O tanto que eu bati naquela menina num tá escrito, e mesmo assim a bicha queria levantar a voz. Eu batia mais, ela reclamava e apanhava de novo. Mas nem sei, mano, respondendo à sua pergunta. Nem sei o que deu ali. A polícia levou e ficou por isso mesmo. Fiquei com raiva ainda porque entrei na lista por um tempo, né? Só não me levaram junto porque eu tinha um monte de foto no Feice pra mostrar que sempre lutei pela Retomada. O problema era ela mesmo.

— Pior que, meu, com todo respeito à Paulinha, teve muita gente ali que foi bem-feito mesmo. O que vi de neguinho barbudo levar pau naquele tempo… O Tiago mesmo, lembra dele, o do bloco sete, meio baitola? Mano do céu, tomou uma cacetada tão forte que caiu numa só. Eu vi da varanda, e olha que moro no 15, hein? Os homi vieram buscar, ele quis dar de esperto e tomou na cara. Nunca mais vi, tem uns que falam que já era.

— Claro que já, cara. A Paula mesmo. Tenho Deus como testemunha de que eu amei aquela menina, tentei de tudo que é jeito dar instrução e ela não quis. Sabe como é filho, né? Sempre se acha mais esperto que os pais. Eu acho que nem vejo aquela ali de novo. Também vai fazer 20 anos, né, Luizão? Ia tá onde? Quando abriram a primeira cadeia-fábrica a mãe dela me fez ir no Registro ver se ela tinha sido levada pra lá e eu tava torcendo pra não ver o nome da Paula, porque, do jeito que ela era, eu que ia ser forçado a bancar o tempo dela, ela não ia querer trabalhar. Nem fudeno! Ela, toda "revolucionária" — e fez aspas com os dedos — , ia cuspir na cara do delegado.

— Ah, pode crê! Nem lembrava dessa fita. Teve até propaganda, né? "Se o preso não trampa, é a família que banca."

— Isso, mano, aí ia ser osso, né? Já não basta a vergonha de ter uma pessoa da família no meio daqueles bandidos, ainda ia ter que tirar de casa pra ficar bancando hotelzinho pra marmanja. Os cara ainda vinha com essa de direitos humanos pra cima de mim, vinha dizer que cadeia tinha que ser lugar limpinho e os caraio. É o que eu sempre disse: direitos humanos pra humanos direitos! Agora tem cadeia mais ou menos, mas tem que trampar, e eu que não quero ficar dando dinheiro pra bandido.

— Foda, Régis. Na minha família teve também. Minha prima Bia e o namorado eram comunistas e pá, mas os dois se mandaram pro Uruguai assim que veio a Retomada. Tão lá até hoje, dois maconheiro. Meus tios tiveram a casa toda revirada, até esculacharam o Júnior, e o moleque tinha uns 14 anos, nem sabia direito qual era a da irmã.

— Nossa, cê falou da Bia. Pode crê, lembro dela ter ido na Paulista quando o Molusco venceu em 2018. Puta merda, dava um barato, ó: puta mina gostosinha, mas tinha que ser comuna, caralho?

— Caraio, Régis, cê também não perdoa, mano hahaha!

— Ah, tio, sabe como é. Cê tá ligado que eu peguei ali uns anos antes disso tudo; tinha acabado de casar, nem tinha os menino ainda, tava meio que na pista, né? Porra, a Bia era da horinha, mas ficou mó nada a ver. Eu lembro que ela fez até campanha pro Molusco. Um dia eu fui zoar ela de feminazi e ela meteu textão pra mim, se doeu e os cambau. Eu tava só zoando, tá ligado? Se é louco, aposto que nem raspa o sovaco.

— MANO, PIOR QUE NÃO! HAHAHA! Pouco antes de cair a internet, eu tinha ela no Feice ainda e lembro que ela postou uma foto mostrando os sovacos rosa. Os dois, manoooo! Bizarro, tio.

— Porra, Luizão! Segunda vez que a gente fala do Feice, dá até uma nostalgia, ó. Era da hora. Tinha o Insta também, lembra?

— Claro, mano. Tinha o Whats ainda, era foda. Mas eu até compreendi quando os caras falaram que precisava cortar. Tava osso o bagulho das fake news, os comunista chorando que era golpe e os cambau. Um monte de jornal dizendo que não era e os maluco insistindo que era. Eu lembro do Jornal Nacional daquele dia até hoje, tava meio climão de festa. Que bosta que os cara da Globo também viraram a casaca depois, agora nem Jornal Nacional nóis tem.

— Pelo menos ainda tem o Datena, né, mano?! O cara tá lá firmão, mó veio mas grita igualzinho quando a gente era mais moleque. O Rezende é outro, puta merda, que lenda. Mas ô, só voltando aqui: você falou do corte da internet. Eu nem sei por que a gente gostava tanto daquilo, na moral. Os cara disseram que precisava cortar por causa das fake news, mas tinha um monte de porcaria também, é bem melhor com essa cota que a gente tem agora porque só usa no que precisa: e-mail do trampo e o pornozinho. Eu gastava duas horas por dia no YouTube, mano, fora as séries do Netflix. Aliás, lembra quando o Netflix mandou aquela de que o certo era "a" Netflix? — e aqui veio outra aspa com os dedos. — Mano, que piada, essas empresas tudo esquerdinha. O cara lá do Feice era outro, só queria deixar os link dos mortadela no bagulho.

— E o cara inventou um carro voador, né, Régis? Mó doido isso. Diz que lá nos Estados Unidos faz dez anos que ninguém dirige, só anda de carro autônomo. Uma pena que o Trump não foi reeleito, porque ia vetar essas coisa aí e a gente ia ser mó aliado. Acho perigoso pra caraio, tio. Ainda bem que o Governo já logo proibiu tudo, fez certo em focar no Carne, Laranja e Soja; acho que foi o melhor programa de governo que o Brasil já teve, na moral.

— Sim, mano. Foi até nessa época que a Globo rodou, os caras começaram a fazer um monte de matéria zoada falando que a ideia de fechar as faculdades tava errada. Na cara dura mesmo, nem se preocupavam em ouvir os especialistas do Governo. Pior que os caras foram muito burros, tio, a lógica era tão simples que o Governo fez só uma propaganda pra explicar; passou tanto que até lembro do texto hahaha: "Se o Brasil vai se tornar o maior exportador de Carne, Laranja e Soja do mundo, pra que estudar filosofia? Pense nisso."

— Era meio sinistrera porque só aparecia a cara do Presidente no comercial, mas a mensagem era bem simples mesmo, não sei como os caras da Globo não entendiam. Mas então, Régis, vou sair fora porque já vai dar minha hora, to entrando no turno da noite. Sabe como é, né, mano? "Para o Brasil se tornar o maior exportador de Carne, Laranja e Soja do mundo, todos precisam trabalhar mais" — disse com uma voz grosseiramente pomposa. — Hahaha!

— Hahaha! Cê é foda, Luizão. Pode crê, mano, já já a Cíntia volta de lá também. Meio foda ficar 15 dias sem ver a mulher, mas pelo menos ela nem deve ter cansado porque tem esse esquema de morar perto do escritório quando tem turno. Puta ideia esse negócio da residência empresarial, o Governo pensou em tudo.

— Pensou, Régis. Mas foi mesmo graças à gente. A gente é o Governo, rapaz.

— Pode crê.

— E aí, seus viado!? Ô, volta aqui, Luiz!

— Deixa o cara, Gabiru. Tá indo comer pra pegar o turno da noite.

— Ah, entendi. Eu fiz o noturno mês passado, tava sempre meio cansado, mas fazer o quê, né não? Se Deus ajuda quem cedo madruga, imagina o que não ganha quem trampa virado! Do que vocês tavam falando?

— Nostalgia: o tempo da internet, do Feice, Insta, da Globo… antes da Retomada, manja?

— Nossa, mano, que viagem! Manjo sim, era mó bosta, ó. Lembra que a gente tinha que ficar votando? Hahaha! Puta que pariu, que tempo lixo a gente vivia.

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