Devo falar sobre uma causa da qual eu não sou protagonista?

Leonardo Pereira
Uma Pera
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6 min readSep 26, 2016

Leo toma distância, estala os dedos, respira fundo e, só então, começa a digitar — o que o faz com uma tremedeira constante na perna direita. Tudo isso porque tem medo de escrever bobagens

Dublin, 2015 — Leonardo Pereira

Graças aos deuses, há até um certo desgaste em torno do discurso de que vivemos um tempo chato porque não se pode falar nada sem que alguém se sinta ofendido, mas cada vez mais eu vejo essa chorumela vazar para dentro de círculos onde não deveria haver ninguém incomodado com tal "chatice". Não sei como isso começou, mas tem ficado claro para mim que os movimentos sociais estão fatigados de pessoas que não estão inseridas em contextos que as forcem a lutar pela equiparação da sociedade, mas que mesmo assim insistem em meter o bedelho. Gente como eu, por exemplo.

Já escrevi disso noutra ocasião, ressaltando que por ser homem, heterossexual, branco e de classe média eu faço mais bem à sociedade ficando quieto do que quando resolvo tocar num desses assuntos. Só vou arriscar esta reflexão porque eu não quero falar especificamente dos movimentos e muito menos tentar desautorizar gente que efetivamente depende das lutas que trava contra o status quo. Quero apenas discutir a forma como a gente, os "não afetados", se comporta.

O gatilho deste texto foi o relato que um rapaz publicou aqui no Medium sobre a transa que ele teve com uma mulher que já havia sido violentada. Debatendo o assunto, comentei com uma amiga a dificuldade que eu sinto quando quero tocar num tema que não me afeta diretamente. O eu de hoje não teria publicado aquele texto, mas compreendo por que o autor entendeu que faria algum bem ao publicá-lo. Acontece que eu já escrevi e falei muita coisa que não deveria ter sido externada, e é a resposta que venho recebendo sobre essas atitudes ao longo dos últimos anos a responsável por fazer com que eu tenha mais cautela. E não é uma questão de pisar em ovos, eu não optei pela cautela porque os meus amigos ficaram chatos, mas porque muitas vezes eu sou parte do problema deles.

Digo que "empatizo" com o autor não por concordar com o que ele fez, mas porque ele claramente se sentiu tocado por um tema que também me toca. É claro que o estupro me incomoda, deveria incomodar a todos. E não é só isso: não me sinto aliviado por imaginar que eu esteja livre de crimes raciais, de ordem homofóbica ou de gênero; eu me sinto mal, com vontade de fazer algo para que os alvos de tais monstruosidades tenham condições de segurança idênticas às minhas. Porque a verdade é que todos esses temas me atingem, indiretamente. Afinal, faço parte de uma sociedade doente, que considera a possibilidade de que uma vítima seja culpada pelo crime que a tornou… vítima. Quando você quer mostrar que se importa, é fácil chegar à conclusão de que difundir informação por meio de um relato escrito de forma palatável seja uma boa ideia.

Protagonismo

Só que aí entra a importante questão do protagonismo. Uma das coisas que geraram insatisfação com o relato do rapaz foi a leitura de que ele puxou para si o papel de porta-voz. Tanto que saíram pelo menos dois textos em resposta àquele, dois textos de mulheres contando como a experiência pós-traumática foi para elas; ou seja, a voz voltou para o lado que realmente importa: o de quem foi verdadeiramente afetado por um crime como aquele.

Mas esse não é o único tipo de situação em que a interferência externa gera ruídos. Nos Estados Unidos, os repetidos casos de violência policial contra negros gerou uma guerra de discursos, porque os brancos insistem em opinar num assunto que não lhes afeta. Aqui no Medium mesmo dá para encontrar exemplos de como os negros estão sendo obrigados a lidar ao mesmo tempo com o problema imediato — Black Lives Matter — e com a formação de um discurso segundo o qual eles são, na verdade, culpados pelo que está acontecendo. E muitas vezes o desgaste é gerado por fogo amigo, gente que rouba o protagonismo dos outros usando a lógica de que ser amigo de pessoas negras dá direito a um passe mágico que lhe permita falar por eles.

No Brasil, talvez o destaque quando o assunto é fuga do protagonismo seja o Gregorio Duvivier, um sujeito que de tanto usar seus privilégios para tratar de questões de esquerda acabou gerando insatisfação entre as pessoas que ele aparentemente tenta ajudar. Tem muita coisa interessante que ele faz, como quando tirou proveito do fato de ter uma coluna fixa na Folha de S.Paulo para puxar a orelha do jornal; mas também há os momentos de controvérsia que, quando aparecem, deixam toda uma comunidade em polvorosa — sim, eu estou falando daquela suposta declaração-merchandising.

Tudo bem, mas o que fazer, então?

É aí que está: eu não sei. Na dúvida, opto pelo silêncio absortivo, porque parece difícil entrar num assunto delicado sem chamar atenção para si próprio.

Logo abaixo do meu texto eu cito várias coisas que li nos últimos dias (e horas). Uma dessas referências tem o título: "Are you a white person about to comment on police violence? Read this first" ("Você é uma pessoa branca prestes a comentar sobre violência policial? Leia isto antes"); é um texto didático cujas recomendações podem caber aqui: 1) alguém te perguntou?, 2) alguém se importa com a sua opinião?, 3) seu comentário é realmente útil? e 4) você poderia simplesmente não dizer nada?

Algo que eu fiz recentemente sem levar puxões de orelha foi publicar um apontamento sobre machismo falando aos homens, tratando de coisas com as quais qualquer um de nós se identificaria. Li também, aqui no Medium, o texto de um jornalista reconhecendo ter falhado no combate ao machismo corporativo quando estava em posição de chefia. O mea culpa, portanto, talvez seja uma opção válida para quem quer desabafar e dar início a um processo de mudança.

Mas na dúvida, repito: opte pela segurança do silêncio.

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