Diário de uma Virada Cultural

Leonardo Pereira
Uma Pera
Published in
7 min readApr 26, 2011

Era para sair curto, era pra ser linear, era pra ser um texto sobre a Virada Cultural, mas virou um mini (?) diário. Para o lado feminino do blog, itálico, para o masculino, formatação normal. Afinal, mulher precisa de curva.*

16h-> Uma para molho e a outra para o macarrão, entre tempeiros e cheiros, preparo o almoço. Sábado é assim, um dia para sentir cada minuto.

17h-> Na cama, só de olho no céu azul, as horas se arrastam. Eu deveria estar a caminho do show de Rita Lee, os braços que me abraçam não me deixam sair. E, confesso, não insisti.

Hoje uma longa noite espera, e as incertezas do que vai acontecer me fazem repensar dez vezes se devo, ou não, sair de casa. Um banho já atrasado desnuda a insegurança, mas vamos lá.

18h-> Deveria estar na XV de Novembro ouvindo Tiê, mas atrasei meio que de propósito, então o ponto de ônibus parece ser o máximo, quando na verdade me deixa cada vez mais irritado. “Vai ser uma longa noite”, eu penso, “será que vai dar tudo certo? Ir sozinho a um evento tão grande no Centro, com um smartphone no bolso, não parece uma boa ideia”… mas vamos lá, repito.

18h30-> Sacomã/Expresso Tiradentes/Parque Dom Pedro e encontrar, no topo da Ladeira Porto Geral, uma projeção majestosa sobre o Pateo do Collegio me fez animar. Achei Tiê pelo som e cheguei a tempo de um “Mapa Mundi” cantado como se fosse CD. Simpatia e show curto meio que combinam; mais estragaria, eu acho. Encontro duas amigas, que se vão logo após chegarem, “a gente volta”, prometem.

19h-> São três celulares, três toques distintos, alguns amigos e incontáveis propostas. “-Stand up comedy?”, “-Palco Geek!!”, “-Beatles, vai?”, “-Cervejinha?”… Banho, tênis confortável, camiseta de ‘Bettlejuice’, perfume, dinheiro, documento, celular velho, ufa! Vamos?

Um Largo São Bento como nunca: tomado por gente interessante, madura, que gosta de jazz. À frente, o casal mais velho reclama da maconha fumada pelo casal de trás e me sinto privilegiado por uma cena ‘morro vs. asfalto’ tão de perto. Nunca vi alguém reclamar na cara de quem estivesse fumando; parabéns, Virada Cultural. Chico Pinheiro, aliás, mandou absurdamente bem.

19h30-> 9500/10 — Paissandu. Para um sábado, o ônibus estava lotado. Gritando ao pé do meu ouvido, alguns moleques, que não passavam dos 16, argumentavam que a bebida chegara ao final. Era “mano” para cá, “jão” pra lá até a chegada ao Terminal Princesa Isabel. A interdição das ruas alterou a rota do ônibus e fez com que eu me arrastasse por quadras.

19h45-> Volto duas casas, bateu a fome. No triângulo São Bento/Boa Vista/XV de Novembro achei a refeição mais barata e simpática da Virada — talvez por ser o primeiro ano daqueles pasteleiros no evento. Aproveito uma combinação genuinamente paulistana: pastel e caldo-de-cana.

20h-> Assim que desci a Libero Badaró, todo o meu receio se esvaiu, ir sozinho foi ótimo. Parei na luta livre do Vale do Anhangabaú, que me fez lembrar o Canal 21. Ri muito, gritei muito, eu parecia um bárbaro virgem, daqueles que não bebem.

20h30->Viaduto do Chá está lotado, a Avenida São João, cheia de fãs de Beatles, parecia um lugar mais tranquilo para passar. De fato, o começo de minha caminhada foi tranquila, mas logo, como animais, as pessoas passaram a se acotovelar por milimetros de ‘conforto’. Eu que SÓ queria chegar ao Vale do Anhangabaú, fiquei incomodada com um senhor que insistia em colocar a mão em meu ombro e com a falta de espaço que tornou aquela rua uma sauna à céu aberto.

Mais à frente, uma multidão rindo pra nada, sem ouvir o que se passava na stand-up comedy e seu som horrível. Graças ao tino jornalístico, me enfiei na escada da única e minúscula arquibancada e consegui, sem muito esforço, um lugarzinho perfeito lá no alto. Dali ouvi um dos comediantes-padrão (é, saía um, entrava outro, mas todos pareciam um só) falar que se o Carlos Slim jogasse na Loteria e ganhasse, perderia dinheiro — o que não deixaria de ser verdade, se o homem mais rico do mundo vivesse de jogo.

21h-> Mais uns metros e o Viaduto do Chá, todo pomposo e um pouco descuidado (se é que esses dois adjetivos podem andar juntos) se coloca em minha frente, com o seu vão inferior tomado por uma multidão ávida por piadas que, para mim, não tem a mínima graça. Como dizia vovó, gosto é igual cu. O ponto de referência para o encontro com duas amigas era uma caixa de som, foi fácil de achar e impossível de chegar.

Foi da arquibancada das risadas que senti vibrar o celular. O peito quase sai do lugar quando vejo o “Lais Mendonça” na tela. “Me encontra no metrô Anhangabaú?”, ela disse. “Mas eu não sei chegar lá”, respondi e, agora, imagino que ela deve ter feito esta cara: ¬¬. Perguntei à policial que, com um ¬¬ misturado com riso, me mostrou os 50 metros que me separavam da estação. Muito bem, Leo, descobriu mais um ponto do Centro.

21h30-> — ‘Bora encontrar o Leo no metrô?’ — ‘Andar mais?’ — ‘Só um cadinho’. Caras emburradas até ver o meu lado esquerdo — sim, meu parceiro de blog, que chamo de lado esquerdo do corpo devido ao nosso posicionamento da Redação. Perdido como sempre e deslumbrado com sua falta de conhecimento sobre a cidade cinza, me deu um abraço forte e um sorriso lindo. De volta ao ponto de encontro, era questão de tempo até o final da comédia (?) para mais uma rodada de encontros.

22h-> Alheio a Virada Cultural, aos shows e as diferentes tribos, um bar na quina da São João com o Anhangabaú fazia ecoar um samba rasgado para os passantes. Além, claro, de vender cerveja gelada. Sim, caro leitor, CERVEJA. Nosso prefeito não conseguiu furtar nosso direito de encharcar nossos fígados. “Que mané Lei Seca na Virada!”.

Com quase dez amigos novos, me vejo num pagode da São João. Ali converso com a médica quase formada, cuja namorada jornalista escreve sobre moda, e descubro mais uma amiga nerd. Se é assim, partimos para algo mais nerd, então? “La, onde fica a Praça do Correio?” Ela só aponta para o outro lado do Vale… e descubro mais um ponto do Centro.

Homens se exibiam, mulheres se jogavam, o clima de pegação rondava nossa mesa no boteco. Alguns passavam, vindos do palco geek, com seus sabres de luz em riste. Outros, buscavam ficar em pé depois de alguns drinks. Até Luke Skywalker deu o ar de sua graça.

22h30-> Os Seminovos. Você sabe que está no melhor show da Virada quando ouve um “morre, diabo!” como protesto pela falha de som. Mais gente que no da Tiê, e gente que conhece as músicas. Letras sobre Luke Skywalker e vários recados a políticos marcam a apresentação, que começou adiantada e terminou depois da minha saída.

23h -> A fome aperta, desejo um pastel no Largo do Arouche. É o meu lugar preferido, em todas as ‘Viradas’ é meu destino. Seja pela comida, seja pela música (muitas vezes) brega, me sinto em casa. Mais alguns encontros e nada de pastel… Fiquei com um pão de queijo mesmo.

23h45-> Me despeço e vejo um cara sendo carregado. “Ainda bem que não bebo.” E vou encontrar mais amigos, desta vez na Galeria do Rock.

0h-> A ansiedade de ver Marina Lima era tanta que muito antes do show, me dirigi ao palco. Depois de tanta agonia, a frustração. Como sempre, Marina estava linda (aqui devo agradecer às duas que me levantaram para que eu, baixinha que sou, pudesse enxergar algo), mas o som do palco estava péssimo e distorcido. Para completar, a cantora apostou em músicas conhecidas e ‘novidades’, porém como uma sonoridade bastante diferente das que estou acostumada. Com diversas interrupções e músicas não empolgantes, decidi abandonar o show. Apesar de ser fã dessa mulher, preferia sair e guardar na lembrança somente o último show que vi dela em São Paulo, no Sesc — que foi fantástico!

Na 24 de Maio vejo estourar uma briga e, quando todos corriam, ouço um “é skinhead!” que faz todos voltarem. Acho que se não fosse a polícia armada, os briguentos seriam espancados, mas tudo acabou bem. Entre 0h15 e 1h encontrei outra vez as duas amigas, que se juntaram a outros três, que se juntaram a um casal: forma-se um bando.

1h30-> Do Arouche para os pés do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, com o vento no cabelo e cansaço no corpo, entrei em um táxi. A idade chegou, não sou mais aquela que passava 12 horas entre as atrações da Virada.

Beatles 4Ever na São João (do lado contrário aos bares pagodeiros). Uma amiga bêbada e chateada com um semitérmino de namoro; um amigo desaparecido e outro que desapareceu à sua procura; um casal querendo fazer mais do que ficar naquele lugar. É hora de andar mais.

2h20-> Stand-up novamente, dessa vez bem mais vazio, mas entrego os pontos e vou me sentar. O casal vem junto comigo para trás da arquibancada, onde geralmente dormem famílias e mais famílias. Me sinto confortável, apesar do mau cheiro, mas levanto e saio andando com medo de assalto.

3h-> Mais luta livre, um pastel inflacionado e os pés morrendo. Quero ir embora. Um bar “sem banheiros”, com bebida quente, nos acolhe enquanto engano as pernas: “Já vamos, já vamos.”

4h-> Saio sozinho do Largo do Paissandu e vou até a estação São Bento do Metrô, onde encontro duas velhinhas. Me senti um lixo ao ver a disposição das senhoras àquela hora, enquanto eu só pensava em banho e cama. Quando o trem chega, traz junto o Bloco da Pedra, que por três horas tocou maracatu andando — e que desceu na Paraíso fazendo barulho.

6h-> No Sacomã, ninguém se importa com a sugestão para permanecer à direita, já que nenhum de nós se atrevia a subir andando — só mais um ônibus e casa. Queria uma incineradora pra jogar as roupas, meu tênis vai pra doação, o corpo dói: acabou a Virada pra mim. Mas não vejo a hora da próxima.

*Este texto foi escrito em parceria com a Lais Mendonça, que dividia comigo o finado blog Humilde Irresponsabilidade.

--

--