O jornalismo-miojo

Leonardo Pereira
Uma Pera
Published in
6 min readFeb 8, 2017

Aquele que causa gastrite porque a gente engole sem mastigar

Takeaway/Wikimedia

No último fim de semana, motivado pelo furor em torno de Marisa Letícia Lula da Silva, refletia sobre questões de empatia quando me lembrei de um perfil acerca de Geraldo Alckmin publicado pela revista piauí em dezembro de 2014. Escrita por Julia Duailibi, a reportagem conta a história do (aparentemente eterno) governador de São Paulo de uma forma que te faz enxergar o homem por trás do político. Mas sem perder de vista a imparcialidade e a sagacidade típicas do bom jornalismo.

Surgiu isso à cabeça porque lembrei de um sentimento esquisito provocado pela leitura: em algum momento do texto, eu queria ter o Alckmin como avô, ele parecia ser um carinha bacana por trás de toda a sua casca politico-ideológica. Foi estranho, apesar de acontecer naturalmente, ter afeto por um dos personagens que mais desprezo dentro da nossa história política atual. A tal da empatia me fez lembrar de que o abominável Alckmin é, antes de mais nada, uma pessoa como qualquer outra, com família, amigos, história e dores — um lembrete que faltou a quem tripudiou sobre a situação da senhora Lula da Silva.

O jornalismo diário não tem muito disso, é raro que passe algum sentimento que fuja do alarmismo e da propaganda. É ágil, não permite mastigação porque é feito para ser engolido de uma só vez. O conteúdo, que deveria ser o prato principal, torna-se mero tempero para o título — este, sim, tratado com esmero. O que a gente lê diariamente na internet é um jornalismo chocho, sem graça; algo que ingerimos pela obrigação de nos mantermos nutridos de informação, seja ela qual for, venha ela como vier.

Aproveitando o comparativo culinário, eu diria que jornalismo diário é o do conteúdo miojo, aquele que já chega à redação semipronto e leva só três minutos para ser finalizado. Passado esse tempo, por vezes taca-se a gororoba nas mãos do editor, o sábio chef, que será responsável por nomear aquilo de forma chamativa. Isso não é regra, mas, como o editor/chef geralmente presta contas ao comercial (que na minha analogia vai ser transformado em "caixa", o sobrinho do dono, que não se importa com a qualidade do que está sendo vendido, contanto que o produto gere fluxo financeiro positivo), é natural que tome para si a responsabilidade pelo nome dos pratos, já que é o título que chama clientes — antes conhecidos como leitores e hoje precisamente renomeados para "usuários".

Se gostar do que consumiu, esse usuário fica fisgado e se transforma em difusor da palavra escrita pelo veículo que lhe proporcionou tal experiência. (Nota: tomar cuidado para não saltar da culinária para a religião.)

Talvez seja justamente por viver de jornalismo-miojo que tanta gente anda com gastrite nervosa. Passamos o dia todo lendo coisa preparada de qualquer jeito e, quando chega o fim do expediente, só o que queremos é um bom Facebook para descarregar a nossa diarreia intelectual: uma massa misteriosa e confusa, que junta referências passadas com conteúdo fresco — e que fede. Como boa diarreia, às vezes surge uma urgência e nem dá tempo de chegar em casa, é preciso descarregar de onde estivermos. Basta pegar o smartphone e vrááá!

Assim como o miojo de verdade, o jornalismo-miojo é resultado de anos de experimentações. E os dois têm histórias legitimamente importantes. Por exemplo, Momofuku Ando, criador da fórmula que deu fama à Nissin, dizia ter pensado no macarrão instantâneo — um alimento barato e de fácil preparo — depois de presenciar os horrores da guerra. Comovente. Hoje, miojo é só mais um produto industrializado cheio de sódio. Tem macarrão instantâneo do bem? Tem, mas o cidadão comum não acha fácil.

O mesmo ocorre com nosso jornalismo de cada dia. Claro que tem coisa boa, mas o grosso da informação chega capenga pra gente: assunto mal interpretado, mal escrito… mal cozido, eu diria.

Na semana passada, apareceu um desses raros casos de jornalismo do tipo prato bem feito, uma reportagem de Adriano Wilkson para o UOL sobre MMA. MMA, devo dizer, interessa-me tanto quanto Geraldo Alckmin, então resisti a clicar na matéria; só o fiz porque muita gente que respeito vinha recomendando a leitura — e não me arrependi. É aquele tipo de matéria que carrega o leitor para outro universo e permite que dê uma passeada por lá.

Existe uma relação bem estabelecida entre comida e jornalismo, algo que se aprende ainda na escola. No jargão da área, “cozinhar” significa reaproveitar a pauta alheia. Não é necessariamente algo negativo, às vezes a Folha deu uma exclusiva que é boa demais, então o Estadão vai lá a repercute com os devidos créditos. Todo jornalista vai "cozinhar" uma vez na vida, porque um único veículo não é capaz de descobrir tudo. Não há vergonha nisso. Mas incomoda que o jornalismo diário tenha se tornado uma cozinha industrial.

Exemplo: um grupo do primeiro semestre de Biologia na Universidade da qual Você Nunca Ouviu Falar, que fica no interior da Tailândia, realizou um estudo com três pessoas que comprova: cerveja faz crescer pelos nas costas. A "informação" sai no jornal da faculdade e é repercutida pelo jornal do bairro; de lá, pula para o jornal local como curiosidade, mas cai num blog meia boca que é lido por um dos redatores do Mashable… pronto. Temos aí uma avalanche de copy+paste, um monte de textos acompanhados do famigerado "diz pesquisa", uma entidade tão presente no jornalismo que já se confunde com ele — uma busca pelo termo no Google retornou 658 mil resultados e, pelo menos na primeira página, todos os links eram de sites jornalísticos. Praticamente uma miojada.

Muita gente teoriza por que essas coisas estão acontecendo ao jornalismo, e a conclusão que mais ouço é que faltam opções criativas para lidar com o fato de que, como o leitor se habituou à informação gratuita, ninguém consegue fazê-lo pagar por isso. Publicidade? AdBlock. Veio o paywall, mas ele não serve pra nada porque outro site vai "cozinhar" aquela informação e ela deixará de ser exclusiva. Tem também o conteúdo patrocinado, a bola da vez, que não tem nada a ver com jornalismo, mas é vendido como se fosse.

É meio triste, porque, embora o jornalismo diário seja de extrema importância, a falta de empenho em torno dele faz com que viver só desse tipo de leitura deixe a gente raso. E, como estamos acostumados ao basicão, fica difícil encarar uma produção mais densa. Gente muito boa, como o pessoal que faz o BRIO, sofre com isso, pois não é qualquer um que peita uma leitura de 49 minutos, como é o caso de "Eles não usam black tie", reportagem de Frank Main sobre o mercado de falsificações de obras de arte.

Durante uma parte da vida que pegou a gravidez e a minha infância, minha mãe era tão pobre que praticamente só comia miojo com batata. Depois, passou anos sem querer se aproximar da combinação. Observadas as devidas proporções, é praticamente o que eu sinto em relação ao jornalismo diário, e talvez seja por isso que o comparo a miojo: de tanto lidar com ele, passei a evitá-lo como se por força de trauma.

Tento me ater ao necessário, como as notícias mais importantes e as do veículo para o qual trabalho. Também leio o Nexo Jornal e o novíssimo Poder360, plataformas que tratam o jornalismo com o devido respeito. De resto, passo batido, esperando pelo momento em que surgirá outro prato bem feito como aquele do Adriano Wilkson para o UOL.

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