Volto ao Brasil porque Jorge Amado

Leonardo Pereira
Uma Pera
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6 min readSep 8, 2016
Não sei quem é o dono da foto :(

No dia 25 de agosto de 2016, quando se completaria exatamente um ano desde que pisei pela primeira vez na Irlanda, eu fazia o caminho inverso e botava os pés pela primeira vez no Brasil desde que decidi morar fora dele. Teve essa curiosa brincadeira de data. Se no 24 de agosto de 2015 eu embarcava com o desconhecido destino de uma temporada em Dublin, no 24 do agosto seguinte eu buscava o conforto da já sabida São Paulo; estava indo para casa.

Mas foi enorme o desconforto da minha mãe quando ouviu que a viagem seria só de visitação. Só não foi mais grave que o desconforto de quem me ouvia dizer desavergonhado que pretendo, sim, voltar definitivamente ao Brasil num futuro ainda não acertado, que minha vida irlandesa não é definitiva. Verdadeira mesmo era a que deixei para trás naquele outro 24 de agosto. Era susto atrás de susto, eu causando estranhamento, desconfiança. O "Será que ele tá brincando?" pipocava tão fortemente nas cabeças que ficava audível e me fazia sorrir — porque acho engraçado, mesmo; é curioso que, para muita gente, não há lugar como qualquer lugar que não seja o Brasil.

Precisa-se inventar boa dose de desculpas para justificar a maluca decisão de querer morar nesse lugar terceiro-mundista e exageradamente tropical, cheio de problemas que vão da violência diária ao descontentamento com saúde, educação e moradia. São coisas muito particulares, que não existem em lugar nenhum do mundo, principalmente na Irlanda. Não tem violência aqui, porque o país não é casa dos maiores consumidores de drogas e substâncias psicoativas em toda a Europa. A saúde é ótima e nenhum paciente passa mais de dia em fila hospitalar. Aqui, a liberdade de escolha é tamanha que ninguém tem de batizar pra educar, porque é mentira que quase 95% das escolas são religiosas, sendo 90% delas controladas pela Igreja Católica. Tem um montão de casa disponível em Dublin, são as pessoas que insistem em morar mal: conheci quem dividisse moradia com outros 16 inquilinos em lugar de um só banheiro (eu, quando cheguei à ilha, fui viver com mais oito porque sou doido, e não por falta de escolha). Tá tudo bem, eu garanto, mas corre por aí o temor de uma bolha imobiliária — daquelas que transformam os classe média em pobres e os pobres em miseráveis — porque os alugueis estão subindo.

Aqui, meu amigo, tudo é perfeito. Ruim mesmo é o Brasil.

O Brasil, a terra dos malandros, onde até o pão francês é pegadinha, já que da França não tem nada. Nas feiras, usam o colorido das barracas como técnica de embuste pra nos fazer comprar umas frutas esquisitas que a gente só acha junta no Brasil, coisas como atemoia, guaraná e açaí — um troço roxo, parecido com barro, que de tão errado é consumido doce ou salgado; um tanto faz que escancara o engodo, ninguém sabe o que fazer com aquilo, então fazem de qualquer jeito. A gente tem pizza de calabresa, mas a linguiça que recheia a massa só é italiana no nome, porque dela nem se ouve falar na Calábria. Aliás, já que é pra mencionar a pizza, é bom que se diga que o que foi inventado em São Paulo pode até ser considerado por aí uma das melhores versões da receita, mas acredite: aquilo não tem muito a ver com a original napolitana — até porque, no Brasil, napolitano não é gentílico, é sabor; e pizza, além de comida, é sinônimo de assunto mal resolvido. Esta redação, por exemplo, é provável que acabe em pizza, porque conclusão, mesmo, não trará nenhuma.

Só tem coisa torta ou fajuta na terra tupiniquim. O próprio tupiniquim sumiu assim como a árvore que denomina a nossa casa (eu mesmo acho que nunca vi um pau-brasil, só sei que dele sai uma tal de vermelhidão). Ainda tem índio no Brasil, claro, mas ninguém liga, o que importa mesmo é ter descendência europeia pra fugir com mais facilidade pro Velho Continente — onde, repito, não existe essa coisa de problema. Por sorte, sangue colonizador é o que não falta na gente. Eu, por exemplo, tenho um Pereira de português no nome, mas também sei que lá pra trás houve uma índia na família, acho que minha bisavó, que nasceu de gente originalmente brasileira — e talvez seja até errado dizer que eles eram brasileiros, já que o Brasil, naqueles tempos, nem de Brasil era chamado.

Também carece de explicação a nossa arte. Filmes? Têm uns de difícil categorização como Central do Brasil (que aqui fora é chamado de "Central Station"), aquela animação de giz de cera, O Menino e o Mundo ("Boy & the World"), e Cidade de Deus ("City of God"), sobre o qual conversei outro dia com um irlandês que se disse fascinado pela cena da galinha — os três títulos, olhei aqui agorinha, constam com altíssimas avaliações; não sei por quê. Nossa música também é complicada, viu? Tinha aquelas parcerias de nomenclaturas recheadas de enes e emes entre Vinícius de Morais, Toquinho, Tom Jobim. Vivemos tempos de Jackson do Pandeiro, Elis Regina, Jorge Ben (com ou sem um "Jor" no final, veja só que coisa peculiar, o moço mudou de nome). Teve Nação Zumbi, Tim Maia e Adoniran Barbosa, um sujeito que nem bem cantava o idioma local. E por falar em fugitivos da língua, teve gente mais nova que complicou ainda mais as coisas, tipo aqueles rapazolas da banda chamada Los Hermanos, que tentaram fingir que vinham do país vizinho e escreviam, mesmo que com mente brasileira, canções em português, inglês, francês…

Brasil, é difícil te defender, você não colabora. E olha que eu sempre arrumo um jeitinho — bem o tal do jeitinho, algo tipicamente nosso. Foi devagar, devagarinho que expliquei a cada interlocutor por que cargas d'água eu quero voltar, e sei que nem todo mundo me entendeu. Tudo bem. No fundo, no fundo às vezes eu também preciso de convencimento, e é nesses momentos em que me lembro de ainda ter Jorge Amado. Aprendi a ler livros por conta própria, já homem feito, pois isso a escola não me ensinou. Aí me encantei pelo itabunense das camisas floridas que tão bem descreveu a capoeira e li, li até me decidir: desse homem farei uma coleção bonita, terei a estante toda colorida de Jorge Amado, livros que comprarei a esmo e guardarei por ordem de lançamento.

Só que o intercâmbio atrapalhou meus planos, porque na Irlanda eu leio no idioma local pra falar melhor esse tal de inglês (e por sorte daqui saíram James Joyce, Bram Stoker e Oscar Wilde). Assinei o compromisso de só ler em "brasileiro" quando estiver no Brasil — e foi por isso que nem bem esperei passar o 25 de agosto de 2016 e tratei de aumentar a coleção com O menino grapiúna. Mostrei a Jubiabá, Capitães da areia, O cavaleiro da esperança, A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, Teresa Batista cansada de guerra, e Farda, fardão, camisola de dormir que um dia eu volto de vez para terminar o que comecei. E o "grapiúna", veja que sorte a minha, é uma pequena autobiografia, um livreto de leitura fácil que me carregou de volta ao negócio firmado com Jorge.

Esse é o meu segredo, é assim que eu me convenço quando surge o desânimo — porque ele vem, sim, vez ou outra, me incomodar. E se um dia me faltarem argumentos, ainda terei o tal compromisso para usar num debate; é disso que falarei se acaso o interlocutor me convencer de que há no mundo uma terra melhor que a do Brasil de Jorge. A resposta ficaria ainda mais fácil, pois em lugar de dar voltas e voltas direi apenas que vou voltar ao Brasil porque preciso terminar a coleção:

"Moço, não me incomode, volto porque… Volto porque Jorge Amado!"

Pronto. Não tem explicação melhor.

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