Abner Oliveira
um a zero
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4 min readJul 9, 2020

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A legitimação da voz da mulher na sociedade é uma construção constante para driblar os adversários históricos que lhe cercam. A prática esportiva feminina e as diferenças entre os gêneros foram bem conceituadas em um dos nossos textos, o qual traz à memória as decisões e proibições do nosso sistema social sexista.

No caso da presença da mulher como espectadora, ou seja, na arquibancada, apesar de haver resistência de muitos na aceitação da mulher na torcida, elas sempre estiveram por lá.

A palavra torcedor, por exemplo, era indicada pelos cronistas a partir da reação do público feminino na arquibancada em dias de jogo, que torciam os lenços em meio aos lances de indefinição e expectativa na partida.

Ao contrário do público masculino, no início do século 20 a conduta das mulheres deveria ser de moderação verbal, sobriedade e silêncio quase absoluto, numa imposição de espaço feito pelo homem e para o homem. Liberdade consentida, mas restrita. A presença delas no território sempre foi estereotipada.

Torcedora do Náutico se manifestando na arquibancada, (Foto: Aldo Carneiro / Pernambuco Press)

O aumento do número nas arquibancadas ao longo dos últimos anos contracena com a ideia machista de que a mulher vai ao estádio por motivos secundários; namorado, status ou jogador que chama a atenção fisicamente. Como se o simples fato de gostar do jogo não fosse motivo suficiente.

O tratamento da mulher como torcedora é complexo e se baseia na provação de seu conhecimento sobre os times, jogadores, escalações e demais análises que o homem indaga, uma espécie de processo seletivo para testar se o interesse dela é real. E isso se estende às mulheres que trabalham no meio.

A naturalização da mulher no futebol sempre foi atrelada a sexualização. A geração que jogava videogames nos anos 2000 deve lembrar das capas do jogo Bomba Patch, mod de futebol baseado no Winning Eleven. Mas não é preciso voltar tanto.

O ano é 2016. Em apresentação dos novos uniformes do clube Atlético Mineiro, enquanto os homens exibiam as camisas com calções e calças, as mulheres eram objetificadas usando biquíni para apresentarem as camisas de jogo.

Como em qualquer desigualdade na estrutura, as políticas de representação e simbolismos são importantes na luta por equidade. Na arquibancada não foi diferente. Sobre a participação das mulheres na primeira geração de “chefes” de torcida destacam-se as tias, as quais integraram torcidas organizadas a partir dos anos 40. Helena Lacerda, Eliza de Almeida, Aida de Almeida, Dona Laura, Florita Costa, Helena Ferreira. Dentre elas, Dulce Rosalina.

Dulce em uma das festas da torcida liderando a bateria. (Foto: Acervo NetVasco)

Fundada em 1944 por Aida de Almeida e um grupo de amigas, a Torcida Organizada do Vasco (TOV) passou a ser comandada, em 1956, por Dulce Rosalina, sendo a primeira mulher líder de uma torcida organizada no Brasil. Sócia do clube desde os dois anos de idade, dedicava sua vida exclusivamente ao Vasco, inovando ao implantar o uso de papel picado e concursos de bateria na arquibancada.

Em 1960, venceu pela Revista do Esporte o concurso de melhor torcedor do Brasil. Seu amor e entrega ao clube era tamanho, que o prêmio recebido por ela foi revertido para o cruz-maltino.

O símbolo de Dulce na arquibancada extrapolava para o campo e atletas. Barrada na entrada do Maracanã com seus papéis picados, Rosalina se revoltou e chamou um dos policiais de “flamenguista”, inevitavelmente sendo presa. Ao saberem do ocorrido, os jogadores do Vasco se recusaram a jogar, exigindo a liberação da primeira-dama. E assim aconteceu.

Dulce é um dos combustíveis pioneiros e exemplo para as novas gerações.

Ainda que haja uma crescente ocupação da mulher nos espaços do seu clube de coração, a falta de representatividade em ações de marketing e produtos oficiais são barreiras que já foram maiores, mas estão longe de serem derrubadas.

Múltipla estupidez, no sentido arcaico e intolerante, e também mercadológico. Não faz sentido afastar ou ser indiferente a 51% do seu possível público consumidor, no Brasil.

O movimento dos clubes e mídia especializada deve transcender o dia 8 de março e criar mecanismos de estímulos para que a participação feminina não seja somente emancipada, mas valorizada.

A ação #ElasNoEstádio, liderada por Aline Pellegrino na federação paulista, é um exemplo de incentivo para que o espaço delas seja cada dia mais intrínseco.

Nelson Rodrigues, se hoje estivesse vivo, certamente discordaria de sua própria suposição em uma crônica no jornal o Globo, em 1969, de que o futebol é um assunto “antifeminino”. Cabe ao presente também se opor.

HOLLANDA, Bernardo B. B. O clube como vontade e representação. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.2010 Viveiros de Castro Editora Ltda.

RODRIGUES, Nelson. 1993. “Um escrete de feras”. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras.

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