Cortando cebolas

Guilherme Prisco
um a zero
Published in
3 min readJun 11, 2020

Ao chegar em casa depois de um longo dia de trabalho, o banho é a primeira escolha para, depois, entrar no site da trivela para verificar a programação de tv para se inteirar de quais os jogos transmitidos do dia. Daí é só o controle na mão, uma porção de amendoim, uma cerveja gelada e sofá. Nada mal, certo?

Claro que essa não é realidade e a preferência de todos, mas o ponto é que para quem está lendo esse texto, nada como poder transitar por vários jogos para servir de alívio para rotina. Legítimo, senão necessário.

Ainda bem que depois de uma longa espera, o futebol está voltando! As transmissões e coberturas dos principais campeonatos do mundo vão voltar a todo vapor; não vai demorar muito para que as opções de jogos em todos os dias da semana voltem! As notícias e debates dos diferentes canais voltaram a ser sobre os jogos! As redes sociais voltarão para os memes futebolísticos. Que eutrapelia!

Desculpem a ironia, ela não serve para estragar o prazer de quem está ansioso pela volta da Premier League. É complicado não se deleitar com o Kevin De Bruyne jogando.

O fato é que o futebol não é apreciado, mas consumido — e alta escala. A mudança de canal é tão frenética que nenhum jogo é assistido de verdade. Apenas a superfície é tocada e as consequências disso não são uma preocupação.

Os debates parecem todos iguais, pois parecem estar mais preocupados em viralizar um comentário absurdo do que trazer uma reflexão interessante sobre um esporte que se relaciona com tantas áreas da vida.

As notícias em que há uma pessoa bem vestida contando-as, existe também um “L” nos cantos da tela, apresentando outras notícias. Elas são ouvidas e lidas num ritmo em que somente as manchetes se tornam verdades. Não há aprofundamento.

A discussão sobre o jornalismo esportivo é para outra hora, mas não é sincero negarmos que essa forma de consumo diz muito sobre o expectador também.

Há uma tese publicada pela Universidade de São Paulo que apresenta conclusões interessantes. A título de exemplo, leia o depoimento de Rubem Alves, transcrito no trabalho acadêmico.

“Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões — é uma alegria! Entretanto, faz alguns dias, eu fui para a cozinha fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”

A pesquisa aponta para alguns comportamentos cerebrais que preferem a segurança do conhecido e tende a repetir ações inconscientes, automatizadas. A percepção é de que o vício nos é intrínseco.

Clubes menores no Reino Unido têm feito campanhas para que as pessoas de sua região não deixem de frequentar seus jogos, que não escolham pagar a Sky Sports para assistir jogos dos grandes clubes, deixando as arquibancadas de seu clube vizinho vazias.

"Não deixe seus filhos crescerem pensando que o futebol é um programa de tv"

Não é segredo que o futebol no estádio proporciona experiências únicas de emoção, conexão, de vida. O caminho de ida ao estádio, seja com amigos, com família, seja sozinho, sempre leva ao novo de alguma forma.

Não só os grandes clubes que proporcionam isso — aliás, esses tem cada vez mais perdido isso, mas, novamente, isso já é outra história. Clubes menores, de várzea, são muito eficazes nesse quesito.

A pandemia ainda vai exigir paciência nesse momento, mas não deixe que seus filhos pensem que o futebol é um programa de tv. Não se deixe viver o futebol como um programa de tv. Não deixe de olhar para cebola antes de cortá-la.

Foto encontrada em: https://www.selecoes.com.br/saude/6-beneficios-da-cebola/

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