Não é pecado se orgulhar

Guilherme Prisco
um a zero
Published in
3 min readNov 5, 2020

É devagarinho que o cheiro de café toma conta da cozinha e se espalha por todos os cantos da casa. Ao se sentar na mesa, o que vai ser?

Pão na chapa com manteiga? Bolo de mandioca, banana assada e coco? Cuscuz de milho com manteiga de garrafa ou molhado no leite? Pão de queijo? Salame, compostas, queijo e cuca?

A resposta naturalmente nos leva para algum canto dessas terras brasileiras. Pode ser devaneio, mas além de trazer uma vontade de comer, chega ser engraçado como as palavras parecem ser tão bonitas e soam tão bem ao serem ditas.

A riqueza do encontro de culturas somente pode ser tocado pelo instrumento pelo qual você está se utilizando nesse momento: a leitura.

Curioso o fato de que a palavra “leitura”, tem sua derivação do latim que, originalmente, possui significado de eleição, escolha — o que vai de encontro com a hipótese de Sapir-Whorf.

A referida proposta de dois linguistas, em injusto resumo, diz que há uma relação intrínseca entre as categorias gramaticais da língua falada por um indivíduo qualquer e a forma como esse entende e concebe o mundo ao seu redor.

Se apegando a esse conceito, é um deleite passear pelas músicas que nos expressam por meio de nossa língua, idioma europeu que se misturou com dialetos indígenas e africanos e, no mais tardar, com outros mais…

Passar pela simplicidade genial de Cartola, se encantar com Jorge Ben Jor, aprender com as composições de Renato Russo, Chico Buarque, Elis Regina, João Alexandre, Moacyr Luz, se divertir com Tim Maia, Nelson Sargento, Gilberto Gil, Seu Jorge, Skank, e paremos porque esse não é ponto e de bom tom evitar injustiças.

Porém, para o contexto aqui dito, vale citar: Terral, de Ednaldo, Amelinha e Belchior.

Não é por coincidência que hoje é o último dia do ano para se celebrar a língua portuguesa, já que temos três datas para tanto por ano. O dia de hoje — 5 de novembro, dia nacional da língua portuguesa — foi estabelecido em homenagem a Ruy Barbosa, mas, ainda que prestemos respeito, a lembrança é pra beleza que o nosso povo produz no seu dia a dia.

Em dias difíceis, no meio do espírito que nos domina e só nos faz ter vergonha da terra em que vivemos, é bom dar ouvidos e olhos para a beleza singular do que nos faz ser quem somos.

É óbvio que o futebol é muito disso tudo.

Vale voltar no tempo, mais especificamente no 12 de junho de 1969, quando houve um amistoso entre Brasil e Inglaterra, disputado no Maracanã.

O primeiro tempo terminou com o placar sugestivo: um a zero — se é que me entendem — , mas para os ingleses.

Para continuar essa história, fica o regojizo na habilidade descritiva de Nelson Rodrigues, quem sabe homenagear a língua portuguesa:

“(…) E a maioria dos locutores, principalmente os paulistas, continuava a exigir a retirada de Tostão. E, no momento em que se exasperavam contra o maravilhoso jogador, Tostão é derrubado na grama e faz o gol! Foi assombroso. Em pé, Tostão já é pequeno e cabeçudo como o anão de Velasquez. Imaginem agora deitado. Os ingleses ficaram indignados e explico: — um gol como o de Tostão desafia toda uma complexa e astuta experiência imperial. Um minuto depois, ou dois minutos depois, Tostão dá três ou quatro cortes luminosíssimos e entrega a Jairzinho. Este põe lá dentro. Naquele momento ruía a pose inglesa. Era a vitória e pergunto: — como reagimos diante da vitória? Claro que homem da arquibancada subiu pelas paredes como uma lagartixa profissional (…)”.

Cabe mais um trecho da crônica “À sombra dos crioulões em flor”:

“(…) Tostão foi, durante a partida, um estilista da cabeça aos sapatos. Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Deu um banho de bola nos ingleses. E a maioria dos espíqueres exigia, aos brados, a sua substituição. O rádio e a TV não faziam outra coisa senão soluçar elogios aos ingleses. Os visitantes tinham todos os méritos e os brasileiros todos os defeitos.”

Para a cereja do bolo, vale citar Ariano Suassuna: “não troco o meu ‘oxente’ pelo ‘ok’ de ninguém!”.

Infelizmente, não encontramos o autor da foto.

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