O despertar para o agora

Abner Oliveira
um a zero
Published in
4 min readFeb 10, 2021

Recém-eleito presidente da Confederação Brasileira de Desportos, em 1958, João Havelange nomeava Paulo Machado de Carvalho como chefe da delegação da Seleção Brasileira.

Pela primeira vez, um psicólogo estava no plano de trabalho para a comissão técnica da Seleção do Brasil. João Carvalhaes, pioneiro na psicologia do esporte e campeão paulista em 1957 com o São Paulo, seria convocado por Vicente Feola para “expor suas ideias à comissão técnica”.

Na preparação para a Copa de 1958, Carvalhaes aplicou o teste de inteligência nos atletas escolhidos pelo técnico Vicente Feola. Baseado nas avaliações do psicólogo, os resultados obtidos e vazados davam à imprensa munição para especulação de possíveis cortes de atletas mediante a apresentação dos resultados obtidos por João Carvalhaes.

Foto: Acervo CBF

Pouco antes da viagem para a Suécia, Carvalhaes realizou testes de ‘personalidade PMK’ e ‘Figura Humana’, mas o maior motivo da polêmica e crítica da imprensa em relação a veracidade e importância da intervenção de um psicólogo no meio do esporte e, principalmente na Seleção Brasileira, foram os resultados das avaliações do Garrincha.

Fernandes, um dos muitos jornalistas críticos dos métodos de Carvalhaes, apontou:

De cara, Carvalhaes quis porque quis aplicar os psicotestes nos jogadores, entre os quais estavam Pelé, com 17 anos, e Mané Garrincha, com 25. Certo dia, Carvalhaes chamou Garrincha para o exame. Ao preencher a ficha no espaço destinado à profissão, o ponta pisou na bola: “Atreta”. Nos exercícios seguintes, não foi muito melhor, conseguindo 38 pontos em 123 possíveis. Em seu relatório, o psicólogo jogou duro: instrução primária, inteligência abaixo da média e agressividade zero.

Já o restante do enredo todos conhecem. Pelé e Garrincha não jogaram as duas partidas iniciais da Copa de 1958, o que tinha relação direta com a participação de João Carvalhaes nas escolhas da comissão técnica, mas também com o histórico psicológico dos jogadores brasileiros em decorrência das duas Copas anteriores.

*É importante lembrar, citado em textos anteriores, sobre o fardo que os jogadores negros carregavam e todo histórico de discriminação racial e atribuição de culpa.

A Psicologia do Esporte no Brasil é recente até mesmo para os profissionais de Psicologia, que a reconheceram como uma especialidade da Psicologia em dezembro de 2000, mas também para atletas, dirigentes, técnicos e clubes que começaram a entender a importância de um profissional qualificado para cuidar primeiramente do ser humano e, como consequência, um aumento do rendimento esportivo.

Se em 1958 o pioneirismo de João Carvalhaes foi importante para datar a história, naquele contexto não representou nenhum grande impulso na área do esporte e Psicologia, visto que somente em 1962 a Psicologia foi reconhecida como profissão no país da maneira como se encontra atualmente.

Eram territórios distintos e (quase) intransitáveis. Somente depois de quase 50 anos, a Psicologia do Esporte seguiu seu destino e reconhecimento.

Quantos atletas neste longo espaço de tempo não precisaram de uma ajuda profissional?

Quantos atletas, hoje, não precisam?

Devido a suas limitações físicas e rejeições por procedimentos cirúrgicos, ao fim de carreira, Garrincha não conseguia treinar e só fazia fisioterapia, o que gerava conflito e críticas por parte da imprensa e dos torcedores. Fatores estes que desencadearam sua depressão.

Agostino Di Bartolomei, Justin Fashanu, Robert Enke, Jeremy Wisten e Manoel Bispo são alguns tristes exemplos de jogadores que tiraram suas próprias vidas pela depressão em décadas e contextos diferentes. Um problema que nos persegue há muito tempo.

Morro García, atacante do Godoy Cruz, é a vítima mais recente desse mal da saúde mental de um atleta. Na última quinta-feira foi encontrado morto em sua casa.

Foto: Divulgação/Godoy Cruz

Já afastado e fora dos planos, o presidente do clube argentino era conhecido por fazer críticas publicamente ao jogador que em 2018 havia sido artilheiro do campeonato argentino e se tornado ídolo da torcida do Tomba.

Este homem (Mansur), que nunca se cansou de desprezá-lo e humilhá-lo, nunca me respondeu. Estou aqui porque todos os meus amigos e minha família permitiram que eu fosse a Mendoza para procurar o corpo do meu filho. E este homem está a passar as suas férias. Eu sou uruguaia, tenho uma educação e lá são dadas as condolências. Nem isso ele fez.

As palavras de Claudia, mãe do ex-jogador, demonstraram a incapacidade do presidente e do clube de lidar com uma doença tão grave de um atleta que além de problemas familiares, já não conseguia desempenhar sua profissão e idolatria no Godoy Cruz, passível de críticas por todos os lados.

Sobre os juízos, é preciso refletir qual o papel dos jornalistas — me incluo na crítica — e do torcedor, os quais muitas vezes disparam ofensas pesadas e pouco construtivas para um cenário tão problemático de um atleta em baixa. Talvez seja assunto para um outro texto.

Se em 1958 somente os testes psicológicos na Seleção não deveriam servir para decidir quem deve entrar ou não numa partida, já que o comprovado seria analisar outra série de medidas como desempenho físico, nível de jogo e avaliação do técnico, por outro lado serviu para constatar uma fraqueza dos fenômenos emocionais de Garrincha.

Mané e tantos outros não conseguiram se salvar. Mas ainda há tempo para os demais, com seriedade e empatia no trato e responsabilidade no acompanhamento.

--

--