Passado que confunde

Abner Oliveira
um a zero
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3 min readMar 3, 2021

Nelson Rodrigues com seu coloquialismo de vizinhança carioca, além de levantar protagonistas que representassem as classes populares, tratava o futebol como peça chave na formação do caráter brasileiro.

Suas crônicas esportivas hiperbólicas e repletas de ironia eram um reflexo da sociedade em que se vivia.

O patrono do jornalismo esportivo amava o futebol, mas era, de fato, apaixonado pelo futebol brasileiro. Gênio e cerebral, costumava dizer que “o intelectual brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar na gravata”, ou seja, para ele o futebol fazia sentido desde os seus personagens populares até citações de Shakespeare, Cervantes ou Dostoiévski. Futebol era arte. Simples e complexo.

Foto: Carlos Moskovics

Exagerado para o bem e mal, o ‘ser brasileiro’ era ditado conforme o desempenho do escrete nacional no gramado. Homem do teatro e da cultura, usou a dramaturgia em cada drible dentro de campo, numa atuação de orgulho ou vergonha e vitória ou derrota.

Na crônica ‘Complexo de vira-latas’, sobre o 1950, por exemplo, ele dizia que “foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor de cotovelo que nos ficou dos 2 x 1.”

Sua tese sobre os complexos e medos dos jogadores brasileiros não mudava o seu fascínio pelo futebol nacional, pelo contrário, já acreditava ser o brasileiro, de todos, o melhor do mundo. Sempre com demasiado raciocínio da imagem do país à prova durante as partidas da Seleção.

Após a conquista dos dois mundiais seguidos, então, a terrível inferioridade deu lugar ao orgulho e pertencimento do ‘homem brasileiro’:

“Os brasileiros têm recursos que só eles próprios sabem usar. Por outro lado, a sua qualidade humana é muitíssimo melhor. Amigos, vamos reconhecer com sóbria e exata autocrítica: não há, presentemente, no mundo, uma figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. Eis o óbvio, que nem todos enxergam: o maior homem da época é o do Brasil.”

Para Nelson, finalmente o brasileiro se identificava como de fato nação, com seus costumes, molecagens e genialidades do inesperado. Características que divergiam de todos os estilos de jogo à época, numa busca incessante de afastar os fantasmas que outrora nos perseguiam.

“Eu diria ainda que nós também “vivemos” o futebol, ao passo que o inglês, ou o tcheco, o russo apenas o joga. Há um abismo entre a seca objetividade europeia e a nossa imaginação, o nosso fervor, a nossa tensão dionisíaca.”

Do mesmo modo que no dia 26 de fevereiro de 1958, num jogo entre Santos e América-RJ, Pelé, aos 17 anos, seria pela primeira vez na história chamado de ‘Rei’ na crônica A realeza de Pelé, Nelson teve a sorte de transcrever em crônicas a época de ouro do esporte para o nosso país.

Foto: Reprodução/Twitter/@SantosFC

À medida que, sem sombra de dúvidas, o cronista criou de certa forma a mística do futebol brasileiro que perdura até hoje.

“Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem.”

A magia do ‘incopiável Garrincha’, a herança afro-brasileira da capoeira e do samba, juntamente com a ginga, finta e jogadas de efeito se distinguem da cintura estática europeia, ou seja, para ser diferente precisa ser brasileiro. O imbatível estilo sem amarras.

O mesmo quarto colocado no último mundial de clubes. É claro que precisa-se considerar calendário, viagem e maturação de trabalho. Mas, se antes México e Egito eram pauta quente somente em competições entre seleções, a realidade hoje é outra.

Cada vez mais é visível um distanciamento do esporte praticado aqui em relação ao Velho Continente, proporcionalmente enxergado um declínio da superioridade que outrora o nosso futebol prevalecia sobre campeonatos e países menos tradicionais.

O mestre das crônicas imortais pariu e tombou textos de um futebol com características e desafios que diferem do praticado há 60 anos. O homem brasileiro traçado por ele, a partir do futebol, nunca fora defendido teórica ou cientificamente, mas permeia o nosso imaginário até hoje.

*Fica aqui a recomendação do livro A Pátria de Chuteiras, o qual reúne diversas crônicas do eterno Nelson Rodrigues.

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