“Você sabe com quem está falando?”

Abner Oliveira
um a zero
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4 min readJul 31, 2020

Nos últimos dias, o que mais se tem visto com a repercussão que a internet gera são as carteiradas de certos “cidadãos” diante das flexibilizações que o governo tem adotado para uma maior circulação de pessoas e com as medidas básicas de distanciamento e proteção.

“Leia bem com quem o senhor está se metendo” (Ilustração de Nando Motta)

Fruto de um país colonizado, a frase escancara o mesmo comportamento aristocrático praticado à época, durante longos anos de escravidão em que já se havia uma hierarquização de papéis e classes sociais, sendo válido o uso desse vocabulário para que o preto, pobre ou escravo se posicionasse sabendo que o lugar que lhe é de direito estaria abaixo dos demais, já que o vínculo com coronéis e donos de terra gera poder e status superior.

Para o futebol, o mesmo se aplica. A reafirmação de que os jogadores brasileiros sempre foram os melhores, e que a técnica brasileira é insuperável, se apresenta até antes do primeiro mundial conquistado, em 1958. No Maracanazzo de 50, a vitória antes mesmo do resultado já era comemorada. Com o vexame, a culpa caiu sob os ombros de quem era mais frágil.

Quatro anos depois, mesmo com a memória da última Copa e a Húngria invicta desde o ouro nas Olimpíadas de 52, caminhando para escrever história como o inesquecível esquadrão de 1954 com Kocsis, Czibor, Hidegkuti e Puskás, ao final do jogo e derrota do Brasil, a imprensa brasileira apontou o árbitro Arthur Ellis como culpado, exaltando que a qualidade da seleção durante todo o jogo havia sido superior aos húngaros.

Por nós, sempre favorito e injustiçado.

A partir da primeira conquista do mundial até o penta, então, a ideia e o imaginário popular de que o Brasil é o país do futebol, onde se localizam os melhores jogadores do mundo, aliado ao dom natural para o esporte, retarda um processo de requalificação na modalidade e autocrítica por parte de vários profissionais da área, inclusive os próprios torcedores.

Por boa parte da imprensa, principalmente em copas, o fato de torcer mais que informar gera uma falsa esperança aos torcedores que buscam, neles, as principais informações e o gabarito de quem trabalha e deveria ser especialista na área.

Aos torcedores, o ideal do “complexo de vira-lata” criado desde 1950 pelos cronistas para o povo sem “raça” transformou-se em ponto positivo após a primeira conquista em 1958, combustível para que a nossa miscigenação deixasse de ser o problema e passasse a ser a solução.

O que gerou um sentimento de superioridade do nosso povo no aspecto futebolístico, como uma espécie de retaliação da nação que está acostumada a perder no IDH e demais comparações para os países desenvolvidos, precisando de algo para ser e se sentir superior.

Contra Itália em 1982, favoritos. Bélgica em 2018, idem. 2014, jogamos em casa, calor da torcida, camisa vai pesar, somos os maiores. “Coragem, Felipão!”.

Como não acreditar?

(David Gray/Reuters/VEJA)

Sobretudo, quando se discute acerca dos técnicos brasileiros em comparação com o nível dos estrangeiros, o fato recente de um português ter feito história pelo Flamengo e outro argentino conseguir a façanha de um vice-campeonato brasileiro comandando a “quarta força” de São Paulo, são ganchos ainda maiores para que a discussão seja levada aos profissionais do Brasil. E a reação é quase sempre a mesma.

“Agora é moda treinador estrangeiro. Não têm nada de diferente. Marca pressão, joga em bloco, inventam um monte de historinha. Futebol brasileiro é pentacampeão do mundo com nossos treinadores. Não podemos descartar. Agora todo mundo lá fora é dono da cocada e aqui não valem nada”

Folclórico e um dos maiores medalhões, Joel Santana, em entrevista à Fox Sports na última segunda-feira, se posiciona de certa maneira como o desembargador de Santos ou o engenheiro civil e sua esposa, no Rio de Janeiro.

“Treinador, não. Pentacampeão. Melhor do que você.”

Calma, não se pode colocar tudo na mesma bandeja de comparação, até porque como disse certa vez Arrigo Sacchi: “O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”. Desrespeitar as autoridades vigentes e colocar em risco a vida das pessoas durante uma pandemia desrespeitando medidas simples de prevenção, certamente fere muito mais do que quando se fala sobre um problema no âmbito desportivo.

Mas, o princípio da arrogância é o mesmo.

Em nenhum dos casos quem aponta o erro ou abre para discussão o debate está desrespeitando o alto cargo exercido ou até mesmo se esquecendo do currículo vitorioso, pois certamente os méritos estão descritos na história.

No entanto, é preciso que se assuma o papel. Sem que haja respaldo pela posição em que se encontra ou pela narrativa escrita em outra época.

A negação, tanto do perigo da pandemia quanto da insuficiência do futebol brasileiro, gera uma injusta expectativa e delonga ainda maior numa possível mudança de cenário.

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