capítulo 20
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20: oi, tem duas dessa?
minha mãe queria companhia pra ir ao poupatempo. ela é do tipo que quer sempre ter uma outra pessoa a tiracolo, para a eventualidade de ela não saber o que tem que fazer. a pessoa a tiracolo então entra em ação, assumindo o papel de um mentor que, diferentemente da ficção, não fala as coisas de maneira cifrada ou enigmática. ele fala exatamente o que a pessoa tem que fazer, como “é ali que atravessa essa rua” ou “ essa pessoa não quer só 2 reais, ela está te assaltando”. no nosso caso, sou acionada quando ela desanda a conversar com uma desconhecida no ônibus e seu gps interno perde o sinal; ou então quando alguém fala que ela precisa tirar xerox de alguma coisa e ela fica rodando em falso, com um olhar perdido, incapaz de sair sozinha daquele curto-circuito emocional.
minha mãe perdeu a carta de motorista não porque dirige mal, mas porque dirige de uma maneira indecifrável. e esse tipo de gradação, de sutileza de análise em relação às habilidades automotivas dos cidadãos, não está presente no dia a dia de um policial rodoviário. “não é uma performance artística, é o transito”, nós o ouviríamos dizer, em um universo paralelo onde pessoas se interessam pelo que um policial rodoviário tem a dizer sobre a vida.
uma das singularidades da direção de minha mãe é que ela não sabe seguir as pessoas com o carro. em vez de andar atrás do carro, calmamente, simplesmente copiando o que o carro da frente está fazendo, ela insiste em se colocar ao lado do veículo que está mostrando o caminho. este, por sua vez, se desespera e acelera mais, na tentativa de restabelecer o equilíbrio. minha mãe, imperturbável em seu flow pilotivo , acelera ainda mais, e em questão de minutos ela se vê protagonizando uma versão baixo-orçamento de velozes e furiosos. uma emocionante cena de racha entre um renault clio e um palio.
eu já estive no banco do passageiro em dezenas desses rachas involuntários de minha mãe. se você está bêbada é assustador. se você fumou é assustador. se você está sóbria, acha que vai morrer.
depois de anos dirigindo indecifravelmente, minha mãe enfim foi pega. por um dos dois policiais cinéfilos que existem no mundo (o outro mora em recife).ele palestrou, diante de sua platéia de duas mulheres não-impressionadas com seu conhecimento cinematográfico “isso aqui não é velozes e furiosos não, é o trânsito. aqui as leis da gravidade, atrito e empuxo funcionam normalmente. e as motivações dos personagens pra cometer crimes não são tão infantis… quer dizer, a suas não sei, né, minha senhora, falo por mim.”
foi autuada por dois crimes gravíssimos: disputar corrida não autorizada e dirigir ameaçando pedestres na via pública (no caso, o próprio policial, porque no afã de ficar olhando para o lado seguindo o carro da sua amiga, minha mãe quase o atropelou enquanto ele sinalizava para ela parar o carro). ficou 2 anos sem dirigir. mas não é por isso que estamos indo no poupatempo. estamos indo porque mal chegou a carta, ela perdeu. estamos indo fazer a segunda via, já que todo mundo sabe que só depois que você paga o boleto da segunda via, a sua carta perdida reaparece na mesa da cozinha.
-antes de ir para o ponto, podemos parar rapidinho naquela loja ali na esquina? foi aniversário das gêmeas essa semana e eu esqueci de comprar presente.
-que gêmeas?
-as da vizinha
-ela tem filhas gêmeas? eu achei que uma delas era amiga imaginária…
-por quê?
-porque só uma fala. “ai camila não sei o que…camila não pode fazer isso…camila, olha só…”
-não, são duas. é que uma é mais quietinha.
-você tem certeza que são duas? viu uma do lado da outra?
-tó meu celular, entra ai no facebook dela e confirma pra mim. maristela o nome.