capítulos 28, 29 e 30

Ceci
Ninguém morre sem ser anunciado
3 min readMay 13, 2020

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28- cenário-proscênio-coxia

Ceci aceitou a proposta de Gisele. Os termos da negociação não estão claros para mim até agora. Nem para elas. Gisele estocou a geladeira e deixou uma lista com nomes, ramais de interfones e instruções enigmáticas para Ceci. Ao lado dos nomes “Paulo e Marília” estava escrito “não atender! problemas conjugais”. Avançando na lista, as instruções ficavam cada vez mais telegráficas: “seu fernando — encanador — aptos 34 e 44 — precisa acompanhar -confusão”.

A sala do apartamento estava do mesmo jeito de sempre, para manter as impressões, mas o resto da casa tinha sido esvaziado quase por completo. No quarto, a cama, um troca lençóis e um cobertor quente demais para dias quentes e frio demais para dias frios. Na cozinha, um copo, uma caneca, um garfo, uma faca, uma colher de sopa, uma de açúcar, um prato e uma panela. “Entendi o recado”, disse Ceci para uma Gisele incorpórea no teto da cozinha: “Não é pra trazer ninguém aqui”. Se reparasse bem, isso estava escrito em todo canto da casa. Na almofada solitária do sofá, no móvel de gavetinha de um lado só da cama, no detergente da pia com a embalagem sem rótulo e meio amarelada, mas ainda pela metade.

Gisele tinha se controlado, porque na certa, a vontade era ter cortado o lençol de casal pela metade, para ficar claro que era pra usar só um dos lados da cama. Bruno e Ana revezavam a ocupação do outro lado, mas nem ele, nem ela, nem Gisele precisavam saber disso.

29: pode subir

-ceci, voce está levando gente aí?

-não.

-o porteiro disse que tem gente vindo.

-não foi aqui. ele é confuso. você sabe.

-tudo certo por ai?

-tudo. e aí?

-certo também.

-ceci, o porteiro disse que teve barulho aí a noite. os vizinhos reclamaram.

-sim, mas não era aqui. eu expliquei pra ele.

-falou que, pela experiência dele, era aí sim.

-não sabia que o seu augusto tinha ouvido absoluto.

-ouvido o quê?

-não era aqui.

30: que sou eu?

Ceci gostava de andar pela sala imitando a Gisele.

-Sou a a Gisele, olha.

-Eu não conheço a Gisele, não sei se a imitação está boa.

-Está igualzinha, acredita em mim, Ana!

-Você sabe que mudar a voz para me pedir coisas absurdas só deixa claro pra mim que você está me pedindo uma coisa absurda, né?!

eu gosto de andar pela casa imitando a gisele.

-sou a gisele, olha.

ana não gostava de imitações minimalistas. achava que não bastava a voz e o gestual. tinha que usar roupas, acessórios, toda uma parafernália que sugava toda vida da brincadeira. porque a imitação, se parecer que demandou esforço, ela não funciona.

-olha, você vai precisar conversar de novo com o seu cachorro, daqui a pouco o porteiro interfona aqui que os vizinhos tão reclamando.

-alfredo, chega! você nem tá vendo o cachorro. tá latindo para uma hipótese. pode ser um cachorro latindo/pode ser alguém imitando um cachorro latindo.

-você precisa pensar melhor antes de começar a falar com o alfredo. não pode sair falando qualquer coisa. olha a cara dele de decepcionado com a sua argumentação.

-ele sabe do que eu estou falando. é uma coisa nossa. eu imitei um gato uma vez pra ele, pra testar o nível cognitivo, e uma vizinha veio perguntar se eu tinha ouvido um miado também, porque ela ouviu e tava procurando a gatinha desaparecida. acontece. pessoas imitam animais no conforto de suas casas.

-quando você imitou o gato, você se escondeu ou ficou na frente do cachorro e falou “miau”?

-o que você acha?

-alfredo, vem aqui pegar um biscoitinho, vem. o biscoitinho da reparação histórica.

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