AmarElo e os Versos Sóbrios e Ternos de Emicida

Por Dentro da Música | Faixa a Faixa | Resenha

Karla Pinheiro
umlugarparatodasascoisas
12 min readDec 3, 2019

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Foto: Julia Rodrigues

Assim como Anavitória descreve o amor romântico em suas músicas através da simplicidade, enxergando no trivial e cotidiano o que há de valor, Emicida segue por uma estrutura similar em AmarElo, utilizando do mesmo para conduzir seu álbum ao ilustrar como, em tempos obscuros, por vezes não conseguimos enxergar o que temos, que é também a força e o motivo, para se seguir adiante.

Na série de televisão estadunidense “Everybody Hates Chris”, ou como ficou conhecida aqui no Brasil “Todo Mundo Odeia o Chris”, é retratado o cotidiano de uma família do Brooklyn, Nova York. Nela há uma professora que, pelo protagonista vir de uma família negra, sempre assume o pior dos cenários possíveis ao falar com o garoto, como quem tem pena, mesmo que muito educada e prestativa, sugerindo que sua família deva ser disfuncional, drogada ou coisa pior. A família de Chris porém, é unida e perfeitamente funcional (afinal o pai dele tem dois empregos!), embora para o mundo exista apenas a cor de sua pele.

O novo álbum de Emicida vem em parte para evidenciar e desmistificar esse tipo de visão racista como a da professora de Chris. AmarElo parece se dividir quase que em duas partes da mesma obra, sendo a sua primeira mais branda, terna e positiva, onde nos é apresentado o outro lado, o fora das estatísticas, onde há apenas famílias, amigos, a vida de pessoas comuns no seu dia a dia. No simples, ele consegue elevar o precioso, evocando o que há de relacionável em cada uma dessas interações citadas e em como recuperar os elos com o próximo, será um passo importante de seja qual for o caminho que decidirmos seguir. Já na outra parte ele vai nos direcionando a seu ápice. A cada nova faixa nos é apontado como são tratadas e pelo quê passam, todas essas pessoas retratadas nas músicas que acompanhamos até então. Suas rimas vão se tornando cada vez mais críticas e diretas, mais duras e agressivas, mas ainda assim permanecendo um alento.

Principia” vem para abrir o álbum e tem o tom certo para esse cargo sendo um prelúdio de tudo o que virá a seguir. A faixa trás participações da cantora Fabiana Cozza, que vem para somar, casando a sua voz perfeitamente com o todo. O grupo musical Pastoras do Rosário também aparece trazendo um coral evocativo para potencializar o refrão, seguido em seu último bis pelo pastor Henrique Vieira com um poema que parece ser a tradução do título que carrega o álbum; a motivação por trás do novo CD de Emicida. É um abraço, um “vai ficar tudo bem”, um estar aqui para falar sim sobre as tempestades, mas para falar também que há muito mais do que elas e são essas coisas que nos fazem passar pela tormenta e ainda sairmos vivos todos os dias.

“ (…)Deus, por que a vida é tão amarga
Na terra que é casa da cana-de-açúcar?
E essa sobrecarga frustra o gueto
Embarga e assusta ser suspeito
Recarga que pulsa aqui, igual Jesus
No caminho da luz, todo mundo é preto
Ame, pois.”

“ (…)O amor cuida com carinho, respira o outro
Cria o elo, o vínculo de todas as cores,
Dizem que o amor, é amarelo.”

Letra na íntegra

A Ordem Natural das Coisas” segue poética ao som doce e quase etéreo de Emicida e Mc Tha, brincando com a rotina e a vida do universo ao apontar que a grandeza pode estar também nos pequenos seres. O sol cede seu lugar de centro, ao se tornar mero coadjuvante, para pessoas que tem as suas primeiras horas do dia já na madrugada. Mães que enviam seus filhos para escola muito cedo, filhos que se despedem de suas mães e partem para os corre da vida, trabalhadores que saem antes do dia sequer se despir da noite… antes do sol.

“A merendeira desce, o ônibus sai
Dona Maria já se foi, só depois é que o Sol nasce
De madruga que as aranha tece no breu
E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu

E o Sol só vem depois
O Sol só vem depois
É o astro rei, ok, mas vem depois
O Sol só vem depois(…)”

Letra completa

Já dizia um francês: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos” — Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupery

Pequenas Alegrias da Vida Adulta” trás a simplicidade e a efemeridade de vários momentos dessa fase, onde ter o que cuidar também se torna uma forma de zelar por si mesmo. Cria-se um elo, que se estende para todos os tipos de famílias que possam existir ao mostrar que o que é importante muda, quando a gente muda. Com tanta cobrança da vida podemos ficar desanimados na corrida do dia a dia, saudosistas em excesso dos tempos de outrora, acreditando que todas as coisas boas já passaram por nós, mas Emicida e o convidado da vez, o comediante stand up Thiago Ventura, que encerra a música de forma ICÔNICA (existente apenas no album), nos presenteiam com essa faixa para falar de forma muito relacionável de algumas delas.

“ (…)É um sábado de paz onde se dorme mais
O gol da virada quase que nós rebaixa
Emendar um feriado nesses litorais
Encontrar uma Tupperware que a tampa ainda encaixa”

“ (…)Uma boa promoção de fraldas nessas drogarias
O faz me rir na hora extra vinda do serviço
Presentes feitos com guache e crepom lembra meu dia
Penso que os sonhos de Deus devem ser tipo isso”

“ (…)Então eu vou bater de frente com tudo por ela
Topar qualquer luta
Pelas pequenas alegrias da vida adulta
Eu vou pro fronte como guerreiro
Nem que seja pra enfrentar o planeta inteiro
Correr a maratona, chegar primeiro
E gritar: É por você, amor”

Letra na íntegra ↓ Clipe

Pequenas Alegrias da Vida Adulta — Emicida part. Marcos Valle

Quem Tem um Amigo Tem Tudo” chega em ritmo de samba, trazendo nada mais nada menos que o próprio Zeca Pagodinho. A música, que em certo ponto é abrilhantada pela também convidada Tokyo Ska Paradise Orchestra, casa perfeitamente com Zeca, se tornando uma ótima adição ao álbum. Assim como o título sugere a sua letra utiliza da leveza de seu ritmo para exaltar a beleza de uma boa amizade, sendo muito feliz ao escolher esse berço para retratá-la.

“ Quem tem um amigo tem tudo
Se o poço devorar, ele busca no fundo
É tão dez que junto todo stress é miúdo
É um ponto pra escorar quando foi absurdo
Quem tem um amigo tem tudo
Se a bala come, mano, ele se põe de escudo
Pronto pro que vier mesmo a qualquer segundo
É um ombro pra chorar depois do fim do mundo(…)”

Letra na íntegra

Paisagem” segue como uma maravilhosa armadilha vestida de uma música leve para nos sentirmos confortáveis quando a letra, está lá para nos deixar desconfortáveis com o nosso conforto. Ela implica, cutuca e critica, de forma bastante elegante, porém pontual. A melodia nos deixa apreciar a vista, só que essa vista pode ser de destruição e violência, ao nos lembrar de como as vezes fazemos cara de paisagem para muita coisa que acontece nos acostumando com o que não deveríamos nos acostumar. Outros ainda, indiferentes a cena, veem tudo com filtro ligado avistando apenas lindas flores… no meio de lápides.

“ Cheira à pólvora, frio de mármore
Ver que agora quantas árvores
Condecora nossos raptores
Nos arredores tudo já pertence aos roedores
É hora que o vermelho colore o folclore
É louco como adianta pouco, mas olhe
Com sorte talvez piore
Não se iluda, pois nada muda, então só contemple as flores
E acende a brasa, esfregue as mãos
Desabotoa o botão da camisa
Sinta-se em casa, imagine o verão
Ignore a radiação na brisa
Sintoniza o estéreo com seu velho jazz
Pra um pesadelo estéril até durou demais
Reconheça sério que o mal foi sagaz
Como um bom cemitério tudo está em paz

Em paz(…)”

Letra na íntegra

Iniciado por um dos melhores e mais gostosos diálogos, Cananeia, Iguape e Ilha Comprida vem para, além de trazer o Emicida papai, ter embutida uma pequena crítica ao dizer que um rapper pode sim falar de forma mais terna quando quer, sem perder a genialidade e o viés de cada música. Emicida ao que parece, abraça as criticas e afirma: “É, é isso memo, (tendeu?)”.

“ Do fundo do meu coração
Do mais profundo canto em meu interior, ô
Pro mundo em decomposição
Escrevo como quem manda cartas de amor”

Letra na íntegra

A próxima faixa assim como “Paisagem” pode enganar aos mais desatentos. “Every Breath You Take” do The Police, que erroneamente é vista por muitos como uma canção de amor, pode ser uma referência a brincadeira sagaz que “9nha” entrega. Com versos calmos e gostosos de ouvir, vem para seduzir embalada pela voz da cantora Drik Barbosa. Essa é a carapuça que a música veste ao criticar tão melodicamente algo como a violência. Parece apenas mais uma de amor a princípio, mas não se engane, não há Lulu Santos aqui. Escute com atenção e veja seu refrão vibrante soar bem mais sinistro em uma segunda vez.

“Eu tinha 14 ou 15
Naquele mês em que meus parceiro assinou o primeiro 16
Hoje 33 agrava, 12 já ligava
Na solidão restou nós de mão dada
Sem trava o papo fluía, ela ia onde eu ia (…)

(…)Ó, meu bem, ó, meu bem
A gente ainda vai sair nos jornais
Ó, meu bem, meu benzinho
A gente ainda vai…”

Letra na íntegra

Ismália” abre lindamente com uma introdução poderosa da cantora Larissa Luz, evocativa, carregada de lamento e indignação, assim sua voz segue durante toda a música. Emicida avança, não menos indignado, versos mais duros, letra mais seca, voz carregada de significados. É a partir dessa faixa que entendemos a construção do álbum, como parte do que ouvimos até aqui existe para mostrar o bom do mundo e dos laços que temos uns com os outros, mas também nos faz lembrar, que assim como na história de Ícaro, tudo pode ser perdido em um piscar de olhos. Infelizmente, é tudo atual.

“(…)Quem disparou usava farda (mais uma vez)
Quem te acusou, nem lá num tava (banda de espírito de porco)
Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada
Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada”

“(…)Olhei no espelho, Ícaro me encarou
Cuidado, não voa tão perto do Sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei
O abutre quer te ver no lixo pra dizer: Ó, num falei?!”

“(…)Primeiro, sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles
Nega o Deus deles, ofende, separa eles
Se algum sonho ousa correr, cê para ele
E manda eles debater com a bala que vara eles, mano”

Ismália, poema de Alphonsus Guimaraens do qual a música toma de inspiração, chega pontual em determinado momento e surpreende quando ouvimos quem o declama. Sua voz familiar, profunda, sua entrega… Arrepia. Fernanda Montenegro, celebrada pelos 90 anos de vida completados em Outubro, mês de lançamento do álbum, vem para coroar, transmitindo todo o sentimento necessário, dessa que é para mim, uma das melhores faixas.

Letra na integra

Mas o flow de Emicida, brilha mesmo em “Eminência Parda”. Suas rimas continuam no ponto e os convidados Dona Onete, Jé Santiago e Papillon não só sustentam como se mostram uma ótima adição, ninguém deixando a música cair. Não tem como não receber a energia enviada por todos aqui. Não tem como não entender o que está sendo dito, pois como Emicida mesmo diz em uma parte da faixa: “não sou convencido (não), sou convincente”, logo o discurso deve ser trazido sempre que o mundo começa a querer esquecer, negar ou apagar.

“ (…)Em ouro tipo asteca, vim da vida seca
Tudo era o Saara, o Saara, o Saara
Abundância meta, tipo Meca
Sou Thomas Sankara que encara e repara
Pique recém-nascido, cercado de xeca
Mescla de Vivara, Guevara, Lebara
Minha caneta tá fudendo com a história branca
E o mundo grita: Não para, não para, não para!”

“ (…)Isso é Deus falando através dos mano
Sou eu mirando e matando a Klu
Só quem driblou a morte pela Norte saca
Que nunca foi sorte, sempre foi Exu”

“ (…)Meto terno por diversão
É subalterno ou subversão?
Tudo era inferno, eu fiz inversão
A meta é o eterno, a imensidão
Como abelha se acumula sob a telha
Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa
Polinização pauta a conversa
Até que nos chamem de colonização reversa”

Letra na íntegra ↓ Clipe

Eminência Parda | Emicida feat Dona Onete, Jé Santiago e Papillon

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte,
Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte.
E tenho comigo pensado: Deus é brasileiro e anda do meu lado,
E assim já não posso sofrer no ano passado.

Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro.
Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro(…)”

Finalmente chegamos a música título do álbum. Diferente de “Ismália” e “Eminencia Parda”, “AmarElo” segue mais otimista e animadora em seus versos, melodia e arranjo, abrindo lindamente com um Sample de “Sujeito de Sorte” do Belchior. Majur vem forte, harmonizando com um Emicida enérgico e cheio de vontade e por fim, sobe a voz da Pablo que se junta a dupla jogando tudo lá para cima. Os agudos de ambos, Pablo e Majur, os levantamentos de Emicida e o seu chamado final, fazem jus a faixa que carrega com glória o título do álbum. “AmarElo” é não só uma música que evoca força, mas também sorrisos e até algumas lágrimas…

“ Eu sonho mais alto que drones
Combustível do meu tipo? A fome
Pra arregaçar como um ciclone (entendeu?)
Pra que amanhã não seja só um ontem com um novo nome(…)”

“ (…)Só eu e Deus sabe o que é não ter nada, ser expulso
Ponho linhas no mundo, mas já quis pôr no pulso
Sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste
Hoje Cedo não era um hit, era um pedido de socorro”

“(…)(Vovó diz) odiar o diabo é mó boi (mó boi)
Difícil é viver no inferno (e vem à tona)
Que o mesmo império canalha que não te leva a sério
Interfere pra te levar à lona, revide!”

“(…) Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir

Letra na integra ↓ Clipe

AmarElo | Emicida feat Majur & Pablo Vittar (Sample: Belchior)

Libre” vem para encerrar o álbum e junto com Ibeyi, duo franco-cubano das gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz, traz uma pegada mais dançante. Emicida aparece na faixa com poucos versos, mas suficientes, pontuais e cheios de energia, chamando o povo e convocando-os a acordar. Ritmo, batuque, arranjos que trazem uma pegada que remetem ao funk brasileiro e a música africana. A faixa grita liberdade, com direito Ibeyi falando em português no final.

“(…)É o tênis foda
Uma pá de joia foda
Reluz na coisa toda
Do jeito que incomoda
Pretos em roda
É o GPS da moda
Se o gueto acorda
O resto que se foda”

Letra na íntegra ↓ Clipe

Libre | Emicida feat Ibeyi

AmarElo inteiro parece ser menos sobre o Emicida rapper e mais sobre o Emicida Leandro, trazendo muito dele mesmo e da sua fase atual para se aproximar de quem possa ouvir sua voz, ao dividir as dores e as alegrias da vida com um tom de maturidade junto a um elenco harmonioso de convidados, onde cada um não só se encaixa perfeitamente na canção que lhe foi dada, como também vem para abrilhantar cada vez que dividem a música com seu dono.

Esse álbum vem para somar, vem para apontar o que tem que ser apontado, mas principalmente para curar, o que descobrimos ser tão necessário quanto as críticas que ele também carrega. Ele faz a proeza de trazer essas duas coisas em equilíbrio só para percebermos o quanto elas se equivalem, tanto para nos fazer continuar, quanto para nos lembrar o porquê de continuar. E que vale sim, vale a pena ainda… mesmo que haja dias em que não pareça, mas vale!

“(…)É sobre aprender tipo giz e lousa
O espírito repousa, reza e volta cem por cento
Cale tudo que o mundo fale e pense
O quanto a vida vale
Seja luz nesse dia cinzento”

Gratidão.

AmarElo, capa | crianças indígenas em foto da ativista Claudia Andujar

AmarElo foi lançado em 30 de outubro, tendo as faixas produzidas por Nave. ♫►Ouvir AmarElo no Spotify

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Karla Pinheiro
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Escrevo para desanuviar a mente, organizar as idéias e dar uma opinião que ninguém pediu | Textos, devaneios e pseudo versos | Twitter: @kahmundongo