Harry Potter, representatividade e queerbaiting

Bruno Ferreira Botelho Lopes
oh, great! it’s bruno
6 min readFeb 15, 2018

Quando em 2007, a autora J.K. Rowling revelou que um dos personagens mais importantes do fenômeno literário “Harry Potter” — o megapoderoso bruxo Albus Dumbledore — era gay, os fãs comemoraram. Era a primeira vez que ela tocava no assunto homossexualidade e o anúncio foi feito durante uma sessão de perguntas e respostas aos fãs no Carnegie Hall, em Nova Iorque.

“ As diferenças de hábitos e linguagem não são nada se os nossos objetivos são idênticos e os nossos corações estão abertos.”

O apoio massivo dos fãs — representado pela longa salva de palmas¹ que se sucedeu após o anúncio e pela repercussão positiva nas redes sociais — não foi, de fato, uma surpresa, já que o fandom da série é conhecido por ser um dos mais inclusivos que existem.

Isso não é por acaso: o texto principal trata de discriminação e da ascensão de um bruxo das trevas que pretende instituir um regime baseado na ódio e perseguição aos trouxas (não-bruxos) e aos bruxos de sangue “impuro”. Assim, a obra trata de temas como racismo, desprezo às minorias, limpeza étnica e distinção de classe, por exemplo.

Dentro dessa rica contextualização social, entretanto, nada foi dito sobre diversidade sexual — ainda que vários capítulos tenham como foco a vida afetiva dos personagens.

Até aquele anúncio em 2007, a sequer existência da homossexualidade/bissexualidade na série Harry Potter era reconhecida. E, embora no mesmo ano a autora tenha afirmado que no mundo mágico as pessoas tendiam a ser mais tolerantes ou indiferentes à respeito de gays e lésbicas, já que sua discriminação se dirigia ao status de sangue², a verdade é que nenhuma linha foi escrita anteriormente sobre o assunto — apesar da autora ter afirmado que “sempre pensou em Dumbledore como gay”.

Tendo sido essa uma decisão pessoal ou não, o fato é que naquele momento um anúncio deste tamanho era considerado “seguro” comercialmente, já que não ameaçaria o sucesso alcançado pelas vendas do último livro, lançado três meses antes. Os seis primeiros volumes já totalizavam 325 milhões de exemplares vendidos³ e o último livro vendera 8,3 milhões de cópias em 24 horas, apenas nos Estados Unidos⁴.

Quanto às adaptações cinematográficas, entretanto, três novos filmes foram lançados após a revelação. Em 2009, 2010 e 2011, com a presença de Dumbledore no centro de todos eles e, notadamente, um forte subtexto afetivo sendo desenvolvido entre ele e o personagem principal.

Quanto à temática da sexualidade, o sexto filme — Harry Potter e o enigma do príncipe — debruçou-se como nunca antes visto no assunto, trazendo a construção de diversos relacionamentos românticos entre os personagens e fazendo disto parte crucial da trama.

Ainda assim, optou-se por não trazer a representação desta população nas obras, apesar do acompanhamento da autora ao trabalho desenvolvido.

O debate foi amornado até o lançamento de “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada”, peça de teatro escrita com a participação da autora e vendida como livro em 2016. Na época, o texto chamou a atenção da mídia por acumular “indícios do que seria um relacionamento queer entre dois garotos, apenas para descartá-lo brutalmente ao final da peça com uma desculpa deslavada: a heterossexualidade ⁵.”

No mesmo ano, em uma entrevista, a autora afirmou que a nova série de filmes que se iniciaria com o lançamento de “Animais Fantásticos e Onde Habitam” — cujo roteiro foi escrito por ela — trataria de Dumbledore como um homem “jovem e complicado” e, inclusive, “sobre sua sexualidade” ⁶.

O primeiro filme foi um sucesso de público e uma continuação foi confirmada: “Animais Fantásticos: Os crimes de Grindelwald”, que se dedicará a contar a história do enfrentamento de Dumbledore à Grindewald — bruxo das trevas por quem ele foi apaixonado durante sua juventude.

Com as afirmações da autora e roteirista e com a divulgação da sinopse oficial do filme, não havia dúvidas sobre a presença do background homossexual do personagem. Seria a oportunidade perfeita de incluir na leitura oficial — e não apenas em comentário fora das obras — essa questão, trazendo a representatividade tão almejada pelo fandom e tão necessária para essa parcela da audiência. Entretanto, contrariando todas as expectativas, o diretor do longa afirmou em entrevista que “o filme não mostrará sua sexualidade explicitamente, mas que os fãs sabem sobre sua história com Grindelwald”.

Queerbating é o nome dado à estratégia de marketing para atrair a audiência do público LGBTQI à obras de entretenimento como filmes, séries, quadrinhos e livros. Se caracteriza por fomentar essa possibilidade em seu texto e na mídia sem, entretanto, oferecer nada em troca — como a justa representatividade. Desta forma, embora se crie uma tensão sexual/afetiva que possibilitará um certo grau de reconhecimento por parte desse público, esta nunca se concretiza, sob o risco de perder o apoio dos expectadores menos liberais. E a saga Harry Potter não é o único exemplo disso.

Os seriados “Supernatural”, “Sherlock” e “Once upon a time” também já foram criticados pela prática. Nos cinemas, “A escolha perfeita 3” teve seu queerbating escancarado ao público durante sua campanha de marketing e “Thor: Ragnarok” seguiu os passos da obra de Rowling, com a divulgação da bissexualidade de uma das personagens apenas pelas redes sociais, sem o assunto sequer ser tocado no filme.

O queerbating é um sintoma da falta de representatividade LGBTQI nas obras de ficção. Representatividade esta, que a audiência está ávida para consumir.

A representatividade na mídia é produtiva em duas frentes: ao passo que permite que os indivíduos se reconheçam e se inspirem por personagens que são como eles — seja em relação às minorias sexuais, de gênero ou de raça — também atuam diretamente na construção de um imaginário público que deve ser plural e diversificado — já que assim é a realidade.

Outra sintoma dessa representatividade falha é o fenômeno conhecido como “bury your gays” (em tradução livre: enterre seus gays), que aponta o fato de personagens LGBTQI estatisticamente terem fins trágicos ou infelizes na maioria dos cenários não-queer — filmes, livros e seriados que não tem a diversidade sexual ou de gênero como seu plot principal ⁸.

O ano de 2016 foi marcado por diversos protestos nas redes sociais depois dos seriados “The 100” e “The Walking Dead” matarem suas personagens lésbicas, se juntando às dezesseis personagens queer que foram mortas em apenas um semestre naquele ano.

Além disso, em 40 anos de história da televisão americana, apenas 30 das 383 personagens queer/lésbicas/bissexuais tiveram finais felizes em suas trajetórias⁹.

Isso significa que as demandas de representatividade na mídia devem ser encaradas de forma consciente e não apenas como estratégia de mercado.

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J.K. Rowling,

Nós saudamos sua contribuição para toda uma geração de leitores e sua obra como instrumento de promoção de valores como a amizade, lealdade e a esperança.

Ser uma aliada da comunidade LGBTQI significa se comprometer com a causa, lutar pela justa-representação dessa parcela da audiência e assumir riscos.

Acreditamos no potencial dessa história para continuar transformando e honrando a vida de tantos jovens LGBTQI — que sempre foram tão leais a sua obra.

Contamos com você!

“Se Harry Potter nos ensinou alguma coisa, é que ninguém merece viver em um armário.”

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Referências:

¹https://www.theguardian.com/uk/2007/oct/21/film.books
² http://www.accio-quote.org/articles/2007/1217-pottercast-anelli.html
³http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,AA1591608-7084,00-O+FENOMENO+HARRY+POTTER+EM+NUMEROS.html
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,7-harry-potter-bate-recorde-de-vendas,23545
https://www.vox.com/2016/9/4/12534818/harry-potter-cursed-child-rowling-queerbaiting
⁶: http://ondda.com/noticias/2016/11/j-k-rowling-dumbledore-abertamente-gay
http://www.indiewire.com/2018/01/fantastic-beasts-sequel-dumbledore-gay-1201923691/http://www.huffingtonpost.ca/2017/06/30/queerbaiting-bury-your-gays-tv_a_23005000/
https://meanjin.com.au/blog/burying-bury-your-gays-2/#easy-footnote-bottom-8

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