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O mar dos perdidos

Ricardo Rachaus
umvagabundosempalavras
5 min readMay 6, 2024

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O som do puxar das cordas seguia-se depois dos grunhidos do esforço que acontecia. Parecia planejado de tão rítmico que era, apesar de ser apenas mais um trabalho comum naquela viagem sem rumo.

Um homem mais velho, corado e com a pele meia seca soltou com sua rouca e grossa voz:

  • O que faz aqui garoto? Você é muito jovem e com muito da vida pela frente para estar nessa viagem suicida.

O garoto não respondeu e continuava a puxar as cordas para subir as velas no mastro em que trabalhava. O suor percorria pela testa até o seu queixo onde cada gota se soltava e pingava de sua face.

O sol era forte e intenso, com um brilho quase cegante. Porém, não muito a frente era impossível de ver o horizonte, pois uma neblina forte e densa se apresentava e ocupava todo o campo de visão.

O senhor disse de novo:

  • Todo mundo aqui sabe que não vai voltar. Por que você está aqui?

Fazendo um rosto de desprezo, o garoto finalmente responde:

  • É pessoal. Estou querendo perder algo.

Meio confuso, o senhor pergunta:

  • Perder? Entendo que estamos indo para um lugar onde vários navios e pessoas se perderam, mas as pessoas vão lá para tentar achar. Provavelmente há muito tesouro perdido. É por isso que estamos nessa estúpida missão. O capitão acha que vamos ficar ricos e não havia nada para tirar de sua cabeça que não valeria a pena. Nunca ninguém voltou de lá. Mas fazer o quê? Não é como se tivéssemos alguém mesmo para voltar ou esperar uma boa e longa vida, então a chance de achar tesouro ou não voltar soa quase a mesma coisa. Pelo menos para mim… acho que falei demais.

O garoto ignorou por alguns segundos a réplica do homem mais velho e meio timidamente disse:

  • Sim, perder. Preciso perder algo…

O senhor não quis perguntar muito apesar de sua grande curiosidade. De qualquer jeito a viagem iria demorar alguns dias e aos poucos poderia fazer o garoto ir se abrindo e descobriria o real motivo.

Os dias foram se passando e a neblina foi tomando cada vez mais a paisagem e os arredores. O sol quase não passava e o ar ficava cinzento e monótono.

Estava pegando a comida para jantar quando viu o garoto sentado a sós em um canto do deque, comendo o seu duro pão com uma sopa de cor de vômito. Se dirigiu ao garoto e sentou-se ao seu lado.

Começou a comer o seu próprio pão com sopa e não falou nada por alguns minutos. Percebia que o garoto estava irritado e queria ficar só, mas ambos sabiam que isso não aconteceria.

  • O que você quer perder? — indagou sem muita cerimônia.

Sabendo que seria importunado como já estava sendo há dias, falou seco e direto:

  • Uma maldição.

Maldição? O garoto parecia muito bem de saúde e de vida, tinha um aspecto meio nobre e parecia estar bem longe de seus devido lugar. Com certeza vinha de uma família com mais dinheiro e talvez até importante e não precisava trabalhar num barco para manter-se vivo.

  • Que maldição? Você não parece estar amaldiçoado. — perguntou com um tom de deboche.
  • Eu tenho uma maldição que me foi dada e que não consigo mais ter pensamentos sem a maldição estar presente. Estou amaldiçoado com os mesmos pensamentos. — respondeu.
  • Que pensamentos? Pode comentar mais? — o senhor curioso e espantado perguntou.
  • Pensamentos ruins. Pensamentos felizes. Independente do que são, pensamentos de que não deveriam estar lá mas sempre estão, e, com isso, não consigo fazer mais nada. Pensamentos que não vão acontecer ou que não irão se repetir. Pensamentos…
  • Não sei se entendi, mas espero que consiga perdê-los então… — respondeu o senhor querendo perguntar mais, porém sabia que já tinha sido intrusivo demais.

Mais dias passaram e a neblina não parecia ter fim. Provavelmente se perderam e não sabiam mais onde iam. As bússolas não funcionam e como queriam um sinal de que direção iam. Não conseguiam distinguir de que lado o sol nascia e de que lado se punha.

O senhor que já estava se tornando amigo do garoto se aproxima dele e diz:

  • Acho que agora não temos mais como voltar nem seguir em frente. Realmente nos perdemos e iremos morrer aqui quando a comida e a água acabarem. — soltou uma gargalhada rouca e debochada.

O garoto não disse nada, apenas observou com um olhar sério, enquanto o senhor continuava:

  • Queria ter aproveitado mais a vida. Conhecido mais pessoas, vivido mais amores, talvez tido filhos… Acho que queria ter tido um amor que eu pudesse voltar e estar ali para mim, aconchegante e quente depois de cada viagem nesse maldito navio. Mas tarde demais para isso…

O garoto comentou:

  • Aproveitando mais ou menos, essa agora foi sua vida, não tem muito como voltar atrás não? Temos que fazer as pazes com o que aconteceu sendo bom e ruim e entender que agora é tarde demais…

O senhor ficou surpreso com essas palavras. O jovem parecia bem mais preparado e sábio depois de dizer isso. O que havia acontecido com ele?

Continuaram mais alguns dias enquanto os mantimentos acabavam-se e não parecia ter uma salvação. Realmente iam todos morrer ali.

Já sabendo que faltava horas para acabar sua vida, o senhor se volta para o jovem e diz com uma gargalhada calorosa:

  • Foi bom te conhecer! Realmente estamos no fim… — e ficou melancólico com as últimas palavras.

Surpreendentemente o garoto parecia animado e bem disposto, apesar de que claramente não iria sobreviver muito mais do que ele.

E assim o garoto diz:

  • Finalmente perdi a maldição. Parece que não há nada que entre aqui e não se perca. Realmente o apelido de mar dos perdidos faz jus ao local. Finalmente não terei que lidar mais com a maldição… — sorria enquanto dizia as palavras e a força de sua voz ia se enfraquecendo.

Fechou os olhos. O garoto morreu ali com um sorriso no rosto.

O senhor deu uma leve risada e enfim entendeu o porquê do garoto ter vindo nessa missão.

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Ricardo Rachaus
Ricardo Rachaus

Written by Ricardo Rachaus

Gosto de escrever estórias e pretendo começar a escrever artigos relacionados a programação.