Photo by Raphael Lopes on Unsplash

Perfeição

Ricardo Rachaus
umvagabundosempalavras
3 min readFeb 18, 2023

--

- Quantas pessoas ali se acham especiais? — indagou-se enquanto olhava a janela.

Olhava com melancolia.

Sentava-se no parapeito da janela e observava enquanto questionava-se. Sabia que aquele era o último momento que teria para tais perguntas.

Passou a vida sem poder se conectar com ninguém. Não que fosse alguém fora do normal. Não que fosse alguém que tivesse alguma característica diferente. Mas, assim era.

Era alguém que não sentia. Alguém que não sentia os outros.

Sua vida era como se passasse através dos olhos de outros, que olhavam por dentro da consciência de outrém. Aquela sensação persistente e contínua de desconexão. A sensação de que estava além do dia a dia daqueles com quem convivia. O sentimento de distanciamento e isolamento do mundo. Como se fosse falso. Irreal. Como se fosse um sonho distante para justificar sua própria existência e seus próprios pensamentos. Seu corpo incorpóreo. Sua vida virtual. A simulação de normalidade.

Não sabia o quanto sua mente havia criado para manter-se dentro da sanidade. Mas lembrava-se com melancolia.

Lembrava-se daquelas pessoas que passaram por sua vida. Não necessariamente amigos próximos. Pessoas íntimas. Mas pessoas que passaram por sua vida e que sua cabeça retornava de vez em quando. Uma nostalgia alienígena. Não tinha afeição particular por aquilo, mas seu cérebro se esforçava para falsificar uma interação humana. Uma sensação forçada de humanidade.

Nunca foi aquilo que chamam de humano.

Nunca foi uma pessoa.

Nunca…

Lembranças de amigos. Lembranças felizes de momentos especiais. Sorrisos, risos e abraços calorosos.

Uma chama vinha com cada memória. Momentos de diversão. Momentos de felicidade.

Seus “amigos”. Aqueles com quem tinha várias memórias. Aqueles com quem vinham sensações fortes. Sensações como nunca tivera sentido antes. Era feliz. Feliz em momentos simplórios e irracionais. Nada construtivo. Nada de especial. Nada além de pessoas com quem se divertiam com sua companhia. Que gostavam de sua presença. Que pareciam alegres de ver ali. O sentimento de que fazia diferença estar ali. Naquela hora. Naquele dia.

Sentimentos passageiros…

Como tudo com que viveu, forçava-se a se adaptar. Forçava-se a ser como os outros. Forçava-se a ser mais uma adição entre tantos outros. A que ninguém lhe olhasse como deveriam olhar. Como uma figura estrangeira. Como mais um corpo desprovido de pensamentos e independência. Apenas mais um pedaço de carne…

Amarelo. A sensação tinha cor amarela. Um amarelo leve e claro. Etéreo. Flutuante. Contrário às leis da física. Antítese. Mas suave e delicada. Como um sopro percorrendo cada contorno. Agressivo e gentil, de acordo com a necessidade.

Talvez… apenas talvez… Talvez o que lhe distinguia da irracionalidade era o que lhe tornava diferente de todos. O que lhe tornava especial? Seria isso? Ou seria apenas o que lhe tornava normal.

O calor em seu torso. O calor em seu peito. Vagamente. Ali estava para despedir-se. Para o adeus que nunca mais sentiria. Uma face borrada. Uma mancha que misturava-se com o azul do céu e o amarelo do sol. O amanhecer final. O fim que lhe aguardava para o novo começo…

Após melancolizar-se sobre seus sentimentos e memórias. Sobre a última parte que precisava remover. Sobre aquilo que lhe prendia a seu potencial. Estava na hora de se tornar além de uma pessoa. Além daquilo que era…

Levantou-se e moveu para a cabine que havia montado. Estava na hora de realizar o ato para se destoar daquilo que sempre foi. Para ir além e atingir tudo que podia. Finalmente se livrar da parte inútil.

Entrou sem pestanejar. Sem pensar duas vezes. Aquele era o momento. Iria se tornar.

Solidão, tristeza. Partes de seu passado. Partes daquilo que jamais seria a partir deste momento.

E assim aconteceu…

Saiu não sentindo nada demais. Sua camada exterior parecia idêntica à que se encontrava ao lado. A carcaça abandonada.

Seu corpo de carne era mais nada. Sua silhueta parecia uma marca do passado. Seu pedaço de carne ignorável. Pouca importava se aquela silhueta representava um homem ou uma mulher. Um ser humano.

Aquilo era algo do passado. Algo deixado para trás. Objeto de desprezo.

Agora não havia mais nada para aperfeiçoar.

A única parte falha de sua existência havia sido corrigida.

Seu corpo doente e fraco. Mortal.

Nada agora poderia lhe impedir…

Havia chegado à perfeição.

--

--

Ricardo Rachaus
umvagabundosempalavras

Gosto de escrever estórias e pretendo começar a escrever artigos relacionados a programação.