Por que você deve parar de repetir a história da origem da sua marca

No momento em que você escreve a história da sua empresa, você diz para as pessoas com qual régua elas devem te avaliar.

Luisa Migueres
uncool
5 min readJul 16, 2020

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Photo by Jorik Kleen on Unsplash

Boas histórias têm uma estrutura. Em um filme, não há conceito mais básico do que os famosos três atos de preparação, confronto e resolução. No caso de sequências com dois ou mais filmes ou séries, os atos se mantêm, mas entram em um loop, se repetindo a cada episódio. Mas em algum momento a história atinge um ponto de saturação — e alguém percebe que "já deu o que tinha que dar".

No mundo do cinema, da TV e dos streamings, essa decisão é pautada por números de audiência, orçamento, e até disponibilidade do elenco. A série não performou bem e não bateu a meta de espectadores? Cancela.

No entanto, quando falamos de narrativas para marcas, a situação é diferente: a história que contamos faz parte de uma longa construção de identidade de uma empresa, e o sucesso dela depende da sua solidez e consistência.

Não se pode alterar o roteiro ou trocar os protagonistas de uma história de marca. Então, o jeito é trocar o foco e evoluir essa narrativa, mas saber o momento certo para fazer isso é um desafio particular.

A sua origem não é a parte mais importante

Quando uma empresa é nova no mercado, é de se esperar que a sua história gire em torno da sua fundação.

Nos meus anos como repórter, entrevistei muitos fundadores de startups que, apesar de terem negócios com propostas de valor totalmente distintas, se valiam de um discurso muito semelhante, quase sempre formado pela estrutura:

Não há nada de errado com essa história. Afinal, ela é verdadeira em muitos casos, e isso já é motivo suficiente para que ela seja contada. Porém, em algum momento, a jornada heróica dos refugiados do mundo corporativo já não será o bastante para levar a marca adiante, e aí sim será a hora de adotar uma nova perspectiva, de refletir sobre o futuro e de atualizar o propósito dos personagens.

Agora que as pessoas já conhecem a sua origem, o que mais você tem a dizer a elas? O que você aprendeu desde então, e como quer transformar esse aprendizado em ações concretas? O que deu errado no caminho e qual foi a solução adotada? É nessa nova etapa que muitas empresas escorregam, tentando abraçar narrativas megalomaníacas.

Perdi a conta de quantas vezes ouvi "Queremos ser os melhores do mundo", sem que houvesse um caminho claro (ou até mesmo um potencial real) de levar o negócio até esse patamar quase utópico.

Eu entendo, deve ser tentador sair do ponto inicial da história — onde, quando e com qual propósito a empresa foi criada — e pular direto para uma visão de futuro inspiradora, em que o sucesso é garantido, mas há um longo caminho a ser trilhado aí no meio.

Compartilhar os erros e aprendizados é mais valioso do que parece

Antes do sucesso épico (que ainda mora no futuro), o "meio" da história de uma marca vai trazer muitos obstáculos. Alguém vai dizer alguma coisa polêmica, vai lançar uma campanha sem noção, provocar um concorrente sem necessidade. Alguma pessoa do corpo de funcionários vai fazer uma reclamação pública, vazar uma informação que prejudica a imagem da empresa. Enfim, nós conhecemos as inúmeras possibilidades e todos os dias surge um novo case.

É na hora da reação a uma crise que a história da marca é questionada pesadamente, e não há vídeo com trilha de ukulele que dê jeito.

Na jornada do herói — modelo narrativo que tira um protagonista do mundo ordinário e o guia por um caminho de aventuras e aprendizado, até o retorno com elixir– o aprendizado é 80% da história. Por que deveria ser diferente com uma empresa?

Como você lida com problemas se torna parte da sua história

Nem todo negócio nasce de uma paixão, ou para resolver um grande problema da sociedade. Alguns são feitos para dar dinheiro mesmo, e tudo bem, isso não diminui o seu potencial de sucesso.

O problema é que, no momento em que você escreve a história que representa a sua empresa, você está dizendo para as pessoas com qual régua elas devem te avaliar.

Conhecer a sua própria proposta de valor (a versão sem filtro, não aquela que você imagina como ideal) é um exercício de humildade e autocrítica que precede qualquer trabalho de marketing ou conteúdo, e requer uma escuta ativa e contínua para entender como o negócio está, de fato, impactando as pessoas.

Um bom ponto de partida para evoluir a história de uma marca é o Value Proposition e o Employer Value Proposition.

Nesse artigo (em inglês) do Justin Jones e Scott Waddell você vê o passo a passo desse processo.

Se feitos com objetividade, muita pesquisa e pé no chão, eles se tornam guias para construir uma narrativa que reflete a sua realidade (na medida do possível, claro) e alinhar expectativas de clientes, parceiros e funcionários — porque quanto maior elas forem, mais forte será o baque quando a sua história atingir um ponto crítico.

Porque em algum momento, uma promessa (seja relacionada a um produto, serviço ou até condições de trabalho) será quebrada, não tem jeito. E o que você pode fazer a respeito, além de solucionar o problema em si? Mostrar o aprendizado que essa crise trouxe, e seguir para o próximo capítulo da história.

Esse mapeamento ajuda a preencher as lacunas da jornada do herói na qual a marca é a protagonista, indo além da sua história de origem e mostrando como ela evoluiu.

Não é a toa que esse modelo narrativo é tão bem sucedido e serve como estrutura para quase todos os filmes e séries já lançados no mainstream. Acompanhar a trajetória de alguém rumo ao crescimento é apaixonante, e faz com que as pessoas invistam na história, e acabem dando a uma marca um de seus bens mais valiosos — a confiança.

Só que para merecer essa confiança, é preciso oferecer transparência. Mesmo que demonstrar vulnerabilidade cause medo. Mesmo que você queira varrer para debaixo do tapete alguns equívocos. Porque a falta de conhecimento é mais fácil de perdoar do que a tentativa de encobrir um vacilo.

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Luisa Migueres
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Creator Partner Manager @ Spotify. Tech and entertainment enthusiast.