Cem anos a mil ou mil anos a cem?

Cartas de um Flaneur — #012

Yves Hermínio
Unifei Finance Itabira
9 min readJun 25, 2020

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Já disse aqui anteriormente que sou apaixonado por esportes. Dentre os vários que acompanho, a Fórmula 1 tem um lugar especial no meu coração. Como não recordar as inúmeras manhãs de domingo torcendo para o carro vermelho da Ferrari sob o comando de Barrichello e posteriormente de Massa. A alta velocidade é apaixonante. A Netflix lançou uma série mostrando os bastidores da principal categoria do automobilismo durante as temporadas. Não preciso te falar que “maratonei” ela em poucos dias.

Na série Drive to Survive é possível conhecer o mundo dos pilotos, seus dilemas, dificuldades e glórias. Em essência, é um esporte muito intenso e competitivo. Para ganhar o campeonato não basta apenas ser o mais rápido, é preciso ser consistente. E isso a série nos apresenta de uma maneira bem interessante. Ela tira o foco puramente do piloto e coloca o olhar da equipe em perspectiva.

As equipes se desdobram para proporcionar o melhor carro possível e a melhor estratégia de corrida para se manterem consistentes e pontuando em todas as corridas. Gerir os pilotos também não é uma tarefa fácil e compor o melhor time para atingir os objetivos da temporada é um grande desafio. Com isso a gente começa a prestar atenção no trabalho que as menores equipes têm para alcançarem as maiores. Confesso que no fim me simpatizei bastante com algumas equipes pequenas, mas meu coração ainda é Scuderia Ferrari.

Gostaria de traçar um paralelo entre o mundo das corridas e o mundo dos investimentos. Ambos possuem bastante similaridades. São competitivos, intensos, por vezes imprevisíveis e possuem seus riscos.

Esses dias me deparei com um jovem investidor que começou a procurar mais sobre como ingressar no mundo dos investimentos. Infelizmente ele se deparou com as plataformas de opções binárias e trades de curto prazo logo de início. Não preciso nem te falar qual foi o resultado. Derrapou na segunda curva e bateu no muro. “Ainda bem que foi pouco dinheiro”, disse. “Vamos colocar esse prejuízo na conta do custo do aprendizado”, respondi. 😉

Muitos novos investidores são seduzidos pelo canto da sereia, por promessas de dinheiro rápido. A alavancagem de algumas operações são bastante tentadoras, mas não compensam os riscos assumidos. No curto prazo os movimentos são praticamente aleatórios. Não seja um iludido pelo acaso que se baseia apenas no viés do sobrevivente.

O viés do sobrevivente consiste no erro lógico de nos concentrarmos em coisas ou pessoas que sobreviveram a algum processo, enquanto ignoramos aqueles que foram eliminados devido a sua falta de visibilidade. O cemitério dos perdedores é silencioso, só damos ouvidos para os grandes vencedores, que podem ter sido escolhidos pelo mero acaso. A gestora Dynamo traz uma boa história para representar os vencedores escolhidos pela sorte.

Um professor de estatística propõe aos seus alunos uma competição de cara ou coroa, onde nenhuma inteligência ou habilidade é requerida, apenas a pura sorte. No dia seguinte o professor revelou que tinha um indivíduo que havia vencido o cara ou coroa 10 vezes seguidas. Pensando que probabilidade disso ocorrer é de 1/2 elevado à 10ª potência, há de se imaginar o espanto no rosto dos alunos. Na semana seguinte o professor apresentou à turma, outro campeão ao acertar 10 vezes seguidas o cara ou coroa e anunciou que em alguns dias iria mostrar outro ganhador do jogo.

A revolta dos alunos foi geral. Como seria possível ter 3 vencedores num jogo que não requer a mínima habilidade aparecerem em tão pouco tempo. As probabilidades disso acontecer são mínimas. Ao ver a inquietação dos alunos o professor decidiu revelar a maneira de encontrar tantas pessoas capazes de saírem vencedoras do torneio.

Ele desenhou no quadro o que seriam 1024 pessoas divididas em dois grupos de 512 cada para a primeira rodada do cara ou coroa. Para a segunda rodada, os 512 vencedores foram divididos novamente em dois grupos de 256 pessoas. A situação foi repetida até que restassem apenas 2 jogadores. Em poucos minutos, uma delas teria obrigatoriamente vencido 10 rodadas seguidas.

O simples algoritmo foi capaz de produzir sortudos em massa. A seleção do sortudo ocorre ao acaso, não é possível saber de ante mão quem será o vencedor entre os 1024 jogadores iniciais, mas no final temos a certeza que alguém será o campeão.

Para combater o viés do sobrevivente é preciso se atentar à amostra, e não ao resultado. Quantos traders foram necessários para produzir a meia dúzia de campeões? Como dito anteriormente, o cemitério dos perdedores é silencioso. Uma vez que temos noção da amostra, é possível perceber que os grandes campeões podem ser fruto do mero acaso. Por isso é importante possuir uma postura cética ao entrar em contato com eles.

Na mesma linha, Nassim Taleb diz que o que importa é o caminho percorrido, a ordem que eventos acontecem e não apenas a direção. Para isso ele apresenta o conceito de dependência do trajeto. Para exemplificar a ideia ele faz uso da seguinte história.

Imagine um dia em que 100 pessoas vão ao cassino para apostar seu dinheiro. Alguns vão ganhar, outros vão perder, não há nenhuma novidade até aí. Suponha que o jogador número 28 “quebre”, perca tudo. Isso afetará o jogador número 29? Não. Tomando o primeiro cenário como base, há a probabilidade de que na nossa amostra 1% dos apostadores vá à falência.

Consideremos então um segundo cenário, onde uma pessoa vá ao cassino durante 100 dias seguidos. No dia 28 ele perde tudo. Haverá o dia 29? Não. Ele atingiu a hora de parar. Game over. A probabilidade aqui é de 100% do jogador ir à falência. O que vale para o todo, não vale para o indivíduo.

Nenhuma estratégia que implica risco de ruína deve ser levada em consideração. O processo de acumulação de patrimônio está sujeito a histerese. Se passa de um determinado ponto, você não volta. O objetivo do jogo aqui é sobreviver. Não vale a pena, em nenhuma circunstância, correr o risco de perder algo que lhe expulse do jogo.

Chegamos então ao assunto principal desta carta. Com todos os conceitos abordados até aqui e com o conhecimento adquirido nas últimas cartas, como investir em um mundo que não entendemos? Para isso, o mesmo Taleb apresenta a seguinte definição: X não é F(X).

X seria a realidade, e já entendemos que a realidade é praticamente impossível de mapear. Então vamos nos atentar ao F(X), que é uma função da realidade. No caso, seria a nossa exposição à realidade, ou seja, o nosso portfólio de investimentos. É muito mais fácil entender de que maneiras vamos nos expor a essa realidade e calibrar nosso portfólio a medida que a realidade se apresenta.

Tomando emprestado um trecho da música do grupo Oriente, te faço a seguinte pergunta: Você quer viver cem anos a mil ou mil anos a cem? Depois de toda introdução acima, se ainda quiser viver perigosamente, buscando altos retornos em curtos espaços de tempo, fique à vontade. Você provavelmente não vai sobreviver a 2 anos e vai envelhecer uns 10 nesse período. Estará submetido à alta pressão, ao stress e correndo o risco de sair do jogo a qualquer momento. Na minha sincera opinião, não vale a pena.

Para responder à pergunta anterior, eu compactuo com uma tese apresentada pela Artemis Capital. Como construir um portfólio que cresça e proteja sua riqueza por 100 anos? Quero que você imagine que tem a oportunidade de conceder à sua família grande riqueza e prosperidade por 100 anos, sujeitas a uma importante escolha. Você deve decidir em quais ativos investir e manter essa alocação por um século inteiro sem nunca alterá-la. O futuro dos filhos de seus filhos depende de sua escolha. O que você faz?

Toda e qualquer decisão de investimento deve ser julgada com base nas possibilidades e informações disponíveis à época em que essa decisão foi tomada. Cem anos é um período muito extenso. Devemos imaginar que no caminho haverá períodos de crescimento econômico, recessões, crises de dívida, inflação, deflação, populismo, revoltas, guerras, pandemias e qualquer outro risco do tipo cisne negro. Será que seu portfólio está preparado para isso?

Muitos investidores montam um portfólio com várias classes de ativos pensando que estão seguros e diversificados. Mas quando o portfólio é exposto a uma crise, vemos que não teve uma real diversificação. Outros investidores já acreditam que podem sempre prever o tempo exato das mudanças de ciclos, mas de fato, mal podem gerenciar seus demônios de medo e ganância. A maior ameaça para 100 anos de prosperidade é negligenciar as históricas lições financeiras de longo prazo e não ter uma diversificação para uma mudança secular.

Para representar essa mudança secular, a Artemis Capital utiliza da alegoria da serpente e do falcão.

Os ativos do tipo serpente são aqueles derivados de grandes ganhos durante os períodos de estabilidade e crescimento. Podemos citar aqui ações, crédito e imóveis. O efeito cíclico do crédito abundante resulta numa expansão da dívida e ao aumento do preço dos ativos. Num primeiro momento essa expansão da dívida é financiada pelo fluxo de dinheiro e crescimento. Depois, a ganância toma o lugar do medo e o financiamento se estende pelas vias especulativas e pela perpetuação do crescimento do preço dos ativos e da liquidez. Nesse ponto do ciclo econômico é como se fosse um ouroboros, onde a serpente come sua própria cauda e se mantém neste processo até se matar.

Os ativos falcão acumulam pequenas perdas ou permanecem neutros nesse período de estabilidade, mas apresentam ganhos exponenciais durante períodos de mudança. Essas mudanças podem vir da asa esquerda do falcão, que representa a deflação, ou da asa direita que representa a inflação. Podemos incluir como ativos falcão o ouro, commodities e volatilidade.

Os grandes ciclos econômicos são explicados por essa dualidade serpente-falcão. Então, como fazer sua riqueza prosperar dada a natureza antagônica desses ciclos? Fazendo a combinação entre ativos ofensivos e defensivos. Esse equilíbrio leva a criação de riqueza e preservação de capital em longos períodos. Dessa forma, criamos mais um ser mitológico nessa alegoria. O dragão.

Um portfólio do tipo dragão é exatamente a junção das exposições entre serpente e falcão. Essa combinação consegue ter um bom desempenho através de todos os ciclos econômicos. Dessa forma é possível gerar um bom retorno ajustado pelo risco de maneira consistente. O segredo de um portfólio que resista ao teste do tempo é uma diversificação através de um século, não de uma década. Buscamos aqui descorrelações seculares acima de retornos expressivos.

No estudo da tese apresentada, verificou que um portfólio ótimo desde 1929 incluía a combinação de 24% de ações americanas, 18% de títulos soberanos do governo americano, 21% de posições compradas em volatilidade, 18% de commodities e 19% de exposição ao ouro.

Não se trata aqui de uma recomendação, mas sim de uma reflexão a se fazer frente a seus investimentos. Sabemos que o obstáculo mais desafiador para construir um portfólio que atravesse mais de 100 anos é social, e não financeiro. Como humanos, sentimos dor quando vamos contra a tendência porque somos biologicamente programados para ser parte de um grupo. Pensamos que é melhor errar junto do que acertar sozinho. E isso é perfeitamente compreensível. Mas se atente para não seguir com a manada.

Cem anos a mil ou mil anos a cem? Terminamos aqui com um conselho da Artemis Capital que pode responder isso de maneira simples. “Não personifique somente o falcão ou a serpente. Torne-se um dragão”! Penso que talvez possamos incorporar o espírito de Raul Seixas. O maluco beleza, que nasceu há 10 mil anos atrás, talvez tenha alguns bons conselhos financeiros para ter sobrevivido a todo esse período. ✌️

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Yves Hermínio
Unifei Finance Itabira

Estudante de Engenharia de Controle e Automação e membro da UNIFEI Finance Itabira. https://medium.com/unifei-finance-itabira